Após Rosa, uma de suas filhas, adquirir sequelas de meningite, a professora Sofia de Araújo passou a levantar a bandeira contra o preconceito e pela inclusão de pessoas com deficiência, em um época marcada pela segregação
Sofia de Araújo nasceu em Blumenau e mudou-se ainda jovem para o recém-criado município de Garuva, na comunidade de Jaguaruna, atual Itapoá. Ao notar que a comunidade onde vivia era negligenciada pelo poder público da época, passou a ocupar lacunas esquecidas, como a educação. Mesmo que tivesse estudado até a quarta série, tornou-se, por pedido dos moradores carentes, professora e iniciou uma campanha de alfabetização entre os filhos dos ribeirinhos, com a intenção de quebrar o ciclo do analfabetismo na região. Após Rosa, uma das 13 filhas, adquirir sequelas de meningite, passou a levantar a bandeira contra o preconceito e pela inclusão de pessoas com deficiência, em um época marcada pela segregação.

A professora contabilizou 11 gravidezes ao longo da vida. A penúltima filha foi batizada com o nome de Rosa, e, assim que nasceu, como todos os outros irmãos, foi absorvida pela rotina conturbada de uma professora líder comunitária.
Na última gestação, deu à luz às trigêmeas. A chegada das três meninas Marias foi tão expressiva para a família, e toda a comunidade, quanto a morte de duas delas que, ainda bebês, faleceram simultaneamente de forma inexplicável, num prazo de 24 horas. Elas foram sepultadas no único caixão feito para uma delas. Dos poucos meses que viveram, foram acometidas pela pobreza familiar. “Não tinha nem leite ‘pras’ meninas; tomavam um caldo de feijão”, lamentou a irmã Salete de Araújo, filha mais velha da professora.

Calejada pela tristeza da perda das filhas, Sofia sempre contou das vezes que admirava ver as três pequenas brincando de esconder e, que, após a morte de duas, a sobrevivente costumava continuar com as brincadeiras, procurando pela casa as irmãs que nunca apareciam.
Próxima de completar o primeiro ano, Salete e a mãe, que se revesavam nos cuidados de Rosa, identificaram na menina uma febre que não cessava. “Ela já ficava em ‘pézinho’ no berço”, lembrou sobre a irmã que minguava aos poucos.
Como não havia estabelecimentos de saúde no continente, a única solução estava do outro lado da Babitonga, mas, uma tempestade que castigava a região há dias impedia a travessia de canoa. A solução provisória sempre foram os chás; mas, no caso de Rosa, não houve efeito para apaziguar sua enfermidade.
A tormenta passou e, às pressas, Sofia levou a criança ao hospital francisquense. O diagnóstico abalou a família: uma meningite que causara sequelas mentais irreversíveis.

A ideia da certeza de um suposto castigo de Deus, representado no nascimento de uma criança deficiente, causava vergonha em inúmeras famílias da época, induzindo as pessoas a esconderem os filhos, como uma madeira de tentar abafar, também, os cochichos sobre o possível pecado que causara a reação divina. Um conceito que se estendeu para dentro da casa de Sofia.
De acordo com os filhos, o pai Ercílio suspeitava que a doença da filha foi o peso da mão de Deus. Passou a aprofundar-se na bebida e na ausência da casa. Impaciente com o comportamento de Rosa, que era agressiva e defecava nas próprias roupas, os embates entre ele e Sofia, que sempre defendeu a filha, tornaram-se constantes. “Ele não tinha paciência”, completou Salete.
Rosa crescia. A pobreza e os poucos estudos sobre saúde mental da época não favorecia quaisquer mecanismo para amenizar as constantes convulsões e surtos agressivos, que sempre eram o estopim para a pior das sugestões que a mãe ouvia: descartá-la em um dos “hospitais de loucos” mais próximo.
Em uma das caminhadas de Rosa ao lado da mãe, que não tinha vergonha em tê-la e mostrá-la, a menina teve um surto em público. A agressividade assustou quem viu com ar de rechaço e sugeriu: “Você tem que internar essa louca”, lembrou, Salete, as palavras que sua mãe ouviu e recolheu para si em um sofrimento solitário.
Sofia identificava na sociedade o severo estigma contra as pessoas com alguma funcionalidade atípica da mente, das mais leves às mais expressivas, como manifestava-se em Rosa enquanto a menina se desenvolvia. Um estigma que não permitiu adentrar em sua sala de aula, onde tinha autoridade.
Enquanto transformava sua vida para suprir a demanda que a filha exigia, observou sutilmente indivíduos com deficiência mental desaparecendo dos núcleos familiares de Garuva, com informações de que foram enviados para os famosos “hospitais de loucos” presentes, principalmente, em grandes centros urbanos, onde supostamente receberiam tratamento de qualidade.
Os espaços, também chamados de “hospitais colônia” eram, na verdade, utilizados para concentrar e aprisionar todos aqueles que não eram ‘bem-vistos’ pela sociedade da época, como: alcoólatras, deficientes físicos e mentais, homossexuais, mães solos, moradores em situação de rua e prostitutas.
Eles partiram, e o que retornou, posteriormente, uma a uma, não eram notícias de melhoras, mas, sim, aquelas que causaram pesar em Sofia. “Gente mais adulta; mandavam pra lá e lá morria”, contou Salete.

Identificando a certeza do triste fim de quem era enviado, Sofia iniciou uma campanha para evitar novas partidas, aconselhando as famílias a permanecerem com seus filhos com deficiência, e não abandoná-los, mostrando-se como exemplo ao impedir que a própria filha fosse enviada ou escondida. “Ela tinha vontade de mudar”, destacou, a filha, o desejo da mãe de uma sociedade inclusiva.
O aluno Edevânio Arceno, que passou a frequentar a casa de Sofia, lembra saudoso da menina Rosa, a qual apelidou de Lene. Ele conta que o comportamento da professora em relação à filha destoava de toda a sociedade, pois, ao contrário de escondê-la em quartos e sótãos, como o costume, Rosa era livre para brincar na rua, para conviver com as outras crianças, com os adultos que visitavam a família; pela mãe, era permitida ser vista, apresentar-se como indivíduo digna de pertencer a esse mundo, a essa sociedade.
” A professora já tinha essa visão diferenciada, de que a interação era necessária para essas crianças. Talvez, por ela ser educadora, por ter uma visão à frente do seu tempo. A gente aprendia muito, pois ela desmistificou”, ressaltou Edevânio que, ao tornar-se professor, afirma que sentiu-se mais familiarizado, e com senso de inclusão, para trabalhar com crianças excepcionais por ter convivido com uma delas durante a infância.
Salete sugere que devido o comportamento incisivo da mãe, pela inclusão, Sofia pôde ter evitado que inúmeros moradores de Garuva, inclusive crianças, com deficiência mental, fossem destinados a esses locais de segregação, onde, possivelmente, morreriam esquecidos e solitários.

Para sempre, Sofia
Se a história de Sofia tinha as estradas de Garuva como os maiores palcos, adornada por uma plateia que sempre a admirou, as cortinas do grande espetáculo se fecharam em uma última andança, no caminho da casa da filha. Era véspera de Tiradentes, de 1982, quando a professora, aos 58 anos, sucumbiu com um infarto, falecendo no dia do feriado. Seu corpo foi enterrado no Cemitério Municipal de Garuva.
Ao longo da vida, Sofia nunca hesitou em mostrar-se como uma mulher corajosa. A noite escura não a fez estremecer, nem a solidão das ruas, nem as incertezas do dia seguinte, nem mesmo o embate contra poderosos injustos. Mas havia, escondido em seu silêncio, um medo que se revelava enquanto a saúde deteriorava.
“Ela tinha muito medo de morrer e deixar a Rosa”, contou Salete.
Um medo comum de qualquer mãe de filhos excepcionais, dependentes daquela paciência e daquele amor que apenas ela consegue explicar. Rosa, que ficou aos cuidados das irmãs, morreu cinco anos depois, com 17 anos, vítima de uma convulsão.

A morte de Sofia de Araújo silenciou uma voz primordial na luta pela inclusão, em Garuva. Um silêncio que durou uma década. O surgimento de outras vozes que davam nova vida aos seus ideais surgiu dos próprios alunos.
No início da década de 90, Edevânio iniciou uma pesquisa para contabilizar as pessoas com deficiência que moravam em Garuva. Ele admite que, na época, ficou surpreso com o resultado, “devido o tamanho do número de crianças que tinha, e porque a gente não sabia, porque essas crianças estavam mantidas quase que em segredo”, afirmou.
Ao finalizar o levantamento social, identificaram a necessidade de um centro de apoio às pessoas com necessidades especiais e seus familiares, e fundaram a Associação de Pais e Alunos Excepcionais, a Apae de Garuva.

Sete anos depois, sob a presidência de Edevânio, foi inaugurado no mesmo prédio a Escola Especial Sofia Araújo, uma homenagem sugerida por seu aluno para uma instituição que, até os dias de hoje, constrói pontes entre a educação especial e a escola regular, por meio da inclusão, oferecendo atendimento especializado aos alunos, promovendo qualidade de vida e eternizando o legado da professora.

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Texto/Herison Schorr
Jornalista formado pela Faculdade Bom Jesus Ielusc
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