Luciane Cordeiro, 49 anos, é uma das milhares de crianças brasileiras que contraíram poliomielite na infância dos anos 70 e 80, quando o Brasil vivia um surto da doença. Com sequelas da paralisia infantil, a moradora de Garuva, Norte de Santa Catarina, hoje, lamenta a falta de oportunidade que teve de receber a vacina. “Meus pais explicaram que estavam longe dos recursos e de onde estavam vacinando”, lamentou.

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Ao notar uma baixa procura pelo imunizante, a catarinense faz uma reflexão sobre a chance que não teve de receber a vacina, e de como ela poderia ter evitado uma vida marcada pelo bullying, além de iniciar uma campanha de consciencialização em suas redes sociais.
“Poder levar uma mensagem, pra essas pessoas, da importância que a vacina tem, e da falta que ela fez pra mim e pra muita gente”, ressaltou.
A entrevista é parte do documentário In dependência – Sequelas da pólio e da violência doméstica em Santa Catarina, disponível neste link.
O retorno do fantasma da pólio ao Brasil
Juntamente com os demais países da Região das Américas, o Brasil foi certificado, pela Organização Mundial da Saúde, como livre da poliomielite no ano de 1994. Contudo, a doença, também chamada de pólio ou paralisia infantil, corre grande risco de ser reintroduzida no país. A avaliação é do pesquisador Fernando Verani, epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).

Santa Catarina viveu surto de pólio nos anos 70 e 80. Foto/Hemeroteca Digital Brasileira
Os motivos para o alerta são vários. O principal deles é a baixa cobertura vacinal. Apesar da gravidade das sequelas provocadas pela pólio, o Brasil não cumpre, desde 2015, a meta de 95% do público-alvo vacinado, patamar necessário para que a população seja considerada protegida contra a doença.
A poliomielite é uma doença infecto-contagiosa aguda causada pelo poliovírus selvagem responsável por diversas epidemias no Brasil e no mundo. Ela pode provocar desde sintomas como os de um resfriado comum a problemas graves no sistema nervoso, como paralisia irreversível, principalmente em crianças com menos de cinco anos de idade.
No país, duas vacinas diferentes são oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a imunização da pólio: a inativada e a atenuada. A vacina inativada deve ser aplicada nos bebês aos 2, 4 e 6 meses de idade. Já o reforço da proteção contra a doença é feito com a vacina atenuada, aquela administrada em gotas por via oral entre os 15 e 18 meses e depois, mais uma vez, entre os 4 e 5 anos de idade.
Segundo o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), a cobertura vacinal com as três doses iniciais da vacina está muito baixa: 67% em 2021. A cobertura das doses de reforço (a de gotinha) é ainda menor, e apenas 52% das crianças foram imunizadas. Nas regiões Nordeste e Norte, a situação é ainda pior, com percentuais de 42% e 44%, respectivamente, para a imunização completa com as cinco doses.
Risco de reintrodução
Uma cobertura vacinal baixa aumenta em muito as chances do retorno do vírus ao país. Por exemplo, em fevereiro de 2022, as autoridades do Malawi, na África, declararam um surto de poliovírus selvagem tipo 1, após a doença infecto-contagiosa ser detectada em uma criança de 3 anos. A menina sofreu paralisia flácida aguda, uma das sequelas mais graves da enfermidade, a qual, muitas vezes, não pode ser revertida.
O último caso de poliomielite no país africano havia sido notificado em 1992, e a África toda declarada livre da doença em 2020. A cepa do vírus responsável por esse caso está geneticamente relacionada à cepa circulante no Paquistão, um dos dois países do mundo, junto com o Afeganistão, onde a pólio continua endêmica.
“Enquanto a poliomielite existir em qualquer lugar do planeta, há o risco de importação da doença. É um vírus perigoso e de alta transmissibilidade, mais transmissível do que o Sars-CoV-2, por exemplo. Estamos com sinal vermelho no Brasil por conta da baixa cobertura vacinal, e é urgente se fazer algo. Não podemos esperar acontecer a tragédia da reintrodução do vírus para tomar providências”, afirmou Fernando Verani.
A opinião é compartilhada pela pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “A pandemia veio acentuar ainda mais a vulnerabilidade das populações em relação às doenças infecciosas. Hoje, o deslocamento de pessoas é muito mais fácil e rápido, logo, a possibilidade de circulação do vírus aumenta. Há uma grave possibilidade de a pólio ressurgir no Brasil, como foi com o sarampo, em 2018. Por isso, precisamos chamar a atenção para o risco e para a necessidade de vacinação”.
O virologista Edson Elias, chefe do Laboratório de Enterovírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), explicou que a vacinação adequada evita, ainda, o perigo de mutação do vírus atenuado da pólio. “Quando a população está com baixa cobertura vacinal, há o risco de mutação do vírus, ao ser transmitido de pessoa para pessoa, tornando-se uma cepa agressiva”, ressaltou.
Sistema de vigilância também é fundamental
De acordo com Fernando Verani, também é motivo de preocupação a pouca eficiência nas estratégias de vigilância da doença para a contenção de possíveis surtos, como foi feito no Malawi. No país africano, o caso da menina infectada foi rapidamente identificado e a população local foi revacinada contra a poliomielite, impedindo uma epidemia viral.
“Há cerca de três anos, os protocolos de vigilância epidemiológica ficaram enfraquecidos no Brasil. Eles têm a finalidade de detectar e prevenir as doenças transmissíveis. As amostras de esgoto das cidades não têm sido recolhidas com a frequência esperada, e não há a notificação e investigação constante de possíveis casos de paralisia flácida aguda. O país possui os recursos e a expertise para manter a polio erradicada, mas não está tomando as ações necessárias”, disse o pesquisador da ENSP/Fiocruz.
O especialista teme que, caso haja uma importação da doença, o sistema de saúde talvez não consiga agir com a rapidez necessária para reprimir sua disseminação. “Se o vírus for reintroduzido e não houver uma notificação rápida do caso, podemos ter uma epidemia. Com as baixas coberturas vacinais que temos hoje, as crianças estão desprotegidas. Podemos ter centenas ou milhares de crianças paralíticas como consequência”, advertiu o pesquisador da ENSP/Fiocruz.
Projeto de Reconquista das Altas Coberturas Vacinais
Em dezembro de 2021, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e a Secretaria de Vigilância e Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) assinaram um protocolo de intenções para implementar um programa de Reconquista das Altas Coberturas Vacinais.
O projeto estabelecerá uma rede de colaboração interinstitucional, envolvendo atores nacionais e internacionais dos setores governamental, não governamental e privado, em torno da melhoria da cobertura vacinal brasileira. O objetivo é implementar ações de apoio estratégico ao PNI para reverter a trajetória de queda nas coberturas vacinais dos Calendários Nacionais de Vacinação – da Criança, do Adolescente, do Adulto e ldoso, da Gestante e dos Povos Indígenas e, assim, assegurar o controle de doenças transmissíveis que podem ser controladas com o uso de vacinas, como a poliomielite.
Registrada no Brasil desde o fim do século XIX, a poliomielite é uma grave doença infecto-contagiosa aguda que provocou numerosos surtos e epidemias no país e em outras partes do mundo, no século XX. Embora a maioria dos países tenham eliminado a pólio, a doença ainda é registrada em algumas partes do mundo – o que é motivo de preocupação entre especialistas, pela possibilidade de reintrodução do poliovírus selvagem no país.
Dedicada ao estudo da história da doença, a historiadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), relembra como a erradicação da paralisia infantil em território nacional demandou enorme esforço institucional desde o início da década de 1980 e foi uma grande conquista da saúde pública no início da década de 1990.
Organizadora do livro ‘A História da Poliomielite’, publicado em 2010, e de outros trabalhos sobre a doença, Nascimento detalha que no ano de 1911, o médico Fernandes Figueira fez a primeira descrição de um surto de poliomielite no país, no Rio de Janeiro. Em 1930, várias epidemias também foram registradas em São Paulo e outras capitais. “Na época, uma epidemia de paralisia infantil também já havia atingido fortemente os Estados Unidos, tendo as crianças como suas principais vítimas”, disse ela.
Foi só na década de 1950, contudo, que a poliomielite chamou a atenção da opinião pública no país, quando epidemias cresceram de proporção e se espalharam por diversas cidades brasileiras, incluindo a maior já registrada no Rio, em 1953, com cerca de 746 casos. Nessa época, a doença gerava grande medo pelas graves consequências causadas numa parcela das pessoas atingidas.
A mobilização da comunidade científica levou ao desenvolvimento, ainda na década de 1950, das duas vacinas contra a doença usadas até hoje. O pesquisador e médico norte-americano Jonas Salk foi o responsável pela primeira, contendo o vírus inativado e injetável. A segunda, em gotinhas, e que traz o vírus atenuado, foi criada pelo pesquisador polonês Albert Sabin.
O Brasil contra a pólio
No Brasil, as atividades de imunização em massa foram iniciadas em 1961, com a adoção da vacina Sabin, mas sem a abrangência e continuidade necessárias para o controle da doença. Também nessa época, foi introduzida no país a técnica laboratorial de diagnóstico do poliovírus, no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Na década de 1970, o Ministério da Saúde tentou, ainda, utilizar de outras estratégias para vacinar a população e conter a doença, como a vacinação de rotina em vez da promoção de campanhas, sem muito sucesso.
Em 1980, a partir de iniciativas internacionais de controle e erradicação, foi estabelecida a primeira estratégia de campanha nacional de imunização contra a pólio. O ‘Dia Nacional de Vacinação’ tinha o objetivo de vacinar todas as crianças de até 5 anos de idade em todo território nacional, em único dia. Segundo Dilene, com apenas três anos de existência da campanha, a incidência da pólio se aproximou de zero. Somente entre os anos de1968 e 1989 o Brasil havia contabilizado mais de 26 mil casos da infecção, conforme dados do Ministério da Saúde.
O último caso de poliomielite paralítica, causada pelo poliovírus selvagem, ocorreu em 1989, na cidade de Souza, na Paraíba. A doença é considerada oficialmente eliminada do território nacional desde 1994, quando foi emitido o certificado da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS). Apesar disso, desde 2015, o Brasil não atinge a meta de 95% do público-alvo vacinado, patamar necessário para que a população seja considerada protegida.
Atualmente, o vírus selvagem permanece endêmico em apenas dois lugares do mundo: Paquistão e Afeganistão. Em fevereiro, um surto também foi identificado no Malawi. A nação africana não registrava casos de poliomielite desde 1992. Especialistas da Fiocruz alertam para o risco de a doença ser reintroduzida no Brasil (link), por conta das baixas coberturas vacinais e a falta de vigilância constante.
Diminuição da procura por imunizantes de crianças é observada em outras vacinas
O estado de Santa Catarina tem identificado uma significativa redução nas coberturas vacinais nos últimos anos, alertou o Diretório de Vigilância Epidemiológica de Santa Catarina. De acordo com a entidade, a pandemia da Covid-19 impactou as ações de imunização, embora a baixa procura pelas vacinas também possa ser explicada pela falsa sensação de segurança causada pela diminuição ou ausência de doenças imunopreveníveis (poliomielite, varicela, sarampo, tétano e muitas outras), movimento antivacinas, desconhecimento da importância da vacinação, falsas notícias veiculadas, especialmente nas redes sociais, e interoperabilidade dos sistemas de informações.
Tabela apresentada pela Dive aponta diminuição na procura por vacinas para crianças e adolescentes em Santa Catarina. Arte: Dive
A prevenção de doenças infecciosas mediante o processo de vacinação (imunização) é uma das medidas mais seguras e custo-efetivas para os sistemas de saúde, destaca a entidade. “A partir da imunização foi possível evitar milhões de óbitos e incapacidades ao longo da história, seja controlando várias doenças como sarampo, rubéola e poliomielite ou, até mesmo, erradicando, como a varíola”, afirmou em relatório.
Para isso, coberturas adequadas e homogêneas se fazem necessárias para todos os grupos populacionais: crianças e adolescentes, alunos de escolas públicas ou privadas. A Dive reforça que as vacinas utilizadas atualmente no país são seguras e eficazes, com eficácia comprovada, independentemente da tecnologia utilizada. “Todas as vacinas utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunização (PNI) foram aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, destacou.
Transmissão e sintomas
A poliomielite é transmitida, geralmente, através da boca, a partir do contato direto com fezes contaminadas ou por água e alimentos contaminados por essas fezes. Por isso, locais com falta de saneamento, más condições habitacionais e de higiene pessoal precária são mais suscetíveis a doença. A pólio também pode ser disseminada pela forma oral-oral, através de gotículas expelidas ao falar, tossir ou espirrar.
O poliovírus se multiplica, inicialmente, nos locais por onde ele entra no organismo (boca, garganta e intestinos). Em seguida, vai para a corrente sanguínea e pode chegar até o sistema nervoso. Desenvolvendo ou não sintomas, o indivíduo infectado elimina o vírus nas fezes, dando continuidade ao ciclo viral. O vírus da poliomielite é bastante resistente, e pode sobreviver durante meses no esgoto.
Na maior parte dos casos, conforme explicado pelo virologista Edson Elias, chefe do laboratório do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), os infectados apresentam poucos sintomas ou nenhum, com um quadro semelhante à gripe, com febre e dor de garganta, ou às infecções gastrintestinais, com náusea, vômito, constipação e dor abdominal. Mas parte dos infectados, especialmente crianças com menos de cinco anos, podem sofrer com formas graves da poliomielite.
Nesses casos, o vírus, após atacar o sistema nervoso, pode causar paralisia flácida aguda permanente, insuficiência respiratória e até o óbito. Em geral, a paralisia se manifesta nos membros inferiores de forma assimétrica, ou seja, ocorre apenas em uma das pernas. As principais características da sequela são a perda da força muscular e dos reflexos, sem perda de sensibilidade.
“Cerca de 97% dos infectados sofre com um quadro respiratório leve, 2% podem apresentar um quadro de meningite e menos de 1% vai desenvolver a paralisia. Após a infecção, não há cura para a paralisia infantil. Uma vez paralítica, a criança está paralítica pelo resto da vida, é um grande drama. A melhor prevenção é a vacina”, destacou Elias.
Dia D de vacinação
O Ministério da Saúde realiza, entre 8 de agosto e 9 de setembro, mais uma edição da Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite e da Campanha Nacional de Multivacinação. O Dia D de divulgação e mobilização nacional será neste sábado (20) de agosto, mas estados e municípios têm autonomia para estipular datas adicionais.
Serão vacinadas contra a pólio as crianças menores de 5 anos. O objetivo é alcançar no mínimo 11.572.563 de indivíduos nessa faixa etária. Já para a atualização das vacinas de rotina de forma geral, o público-alvo são os menores de 15 anos. Em ambos os casos, não há necessidade de guardar intervalo em relação à vacina contra a Covid-19.
A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) destaca que o engajamento da população é fundamental para o Brasil se manter livre de doenças que podem levar à morte ou deixar sequelas. Compareça às Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Informações complementares obtidas no site da Fiocrus e Ministério da Saúde
Texto: Herison Schorr
Jornalista formado pela Faculdade Bom Jesus Ielusc
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