Sofia de Araújo
Fé, perseverança e inclusão
Tinha uma casa em cima do morro, e muitas crianças dentro. Tinha floresta em volta da casa, e muita gente do lado de fora, morando pelos cantos dos cantos; escondidos, outros mais encontrados. Muitos encontros pelos caminhos que se perdiam.
Tinha um pedaço de mar, e, mais na frente, um mar inteiro. Tinha um pé de jaca, que dava nome a um lugar, e tantos outros de mandioca, de banana e de feijão. Às vezes, tinha de arroz; às vezes os bichos do mato enchiam as panelas e as barrigas; às vezes, até passarinho.
Tinha calor de quase 37 ºC; tinha chuva, até demais. Tinha cobra, jacaré e tatu. Tinha casa de sapê, de madeira, de toco de qualquer coisa; às vezes, nem casa tinha. E o que não tinha, era o que mais se percebia.
Não tinha capela, nem padre, mas tinha quem quisesse rezar, e rezava. Não tinha ponte inteirinha e firme, só a coragem para atravessar, e atravessava. Não tinha escola, nem professora, mas tinha quem quisesse estudar, e estudava; quem quisesse ensinar, e ensinava. Não tinha merendeira e nem merenda, mas, de alguma forma ou de outra, a sopa borbulhava. Não tinha material escolar, mas se improvisava, e tinha até sorvete seco pra quem no primeiro dia de aula chegava. Não tinha sapato, mas percorria; o fôlego se esvaía, mas arranjava; não tinha salário, mas trabalhava; a barriga crescia de grávida e ainda, assim, ensinava.
Em uma terra que já foi de São Francisco do Sul, de Garuva, de Itapoá, de tantos donos, ou de nenhum, não tinham ensino, nem cidadania, representatividade, nem voz, mas teve quem desse: Sofia de Araújo, uma professora fantasticamente corajosa que tornou-se símbolo da luta pela educação aos pobres e inclusão às pessoas com deficiência.

O forjar de uma mulher perseverante
Pouca era a doçura em uma infância que amadureceu depressa. Sofia Oliveira Pakuszewski nasceu no dia 14 de junho de 1926, em Blumenau, e perdeu o pai ainda cedo. Uma das caçulas, a então menina passou a ajudar a mãe nos afazeres de casa e na lavoura, arrendando a terra e revirando-a para dela tirar o sustento da família.
Seus filhos, hoje, acreditam que a ausência do pai em uma sociedade ainda essencialmente patriarcal forçou Sofia à necessidade de ocupar o lugar vazio, moldando uma mulher empoderada, com senso de liderança, destoando das demais que eram condicionadas ao silêncio. Como o labor consumia quase todos os ponteiros do relógio, não houve tempo para estudos, abandonando a escola assim que se alfabetizou, na quarta série.

Em uma das vezes que foi à cidade vender verduras, conheceu seu marido, Ercílio de Araújo, um carroceiro que lhe ofereceu carona. Dele, herdara o casamento, o sobrenome e os dois primeiros filhos, ainda na cidade natal. Na segunda gestação, um susto: “Ele (Ercílio) sumiu e só apareceu na maternidade”, lembrou a filha Maria Salete de Araújo, de 72 anos, sobre um comportamento do pai que sempre foi o motivo do descontento da mãe.
Um olhar aos esquecidos
Ele queria regressar; ela, ficar perto da mãe. Ercílio, nativo da região de Garuva, insistia no convencimento da mulher. Sofia estava decidida que jamais abandonaria a família materna, mas a decisão do marido prevaleceu. Contrariada, cedeu, deixando a dona de seu primeiro amor.
Foi uma viagem demorada. Primeiro, de carroça; depois, canoa, atravessando os rincões que circundam as águas do rio Palmital, até chegar à localidade de Jaguaruna, de apelido “Jaca”, atual Itapoá. As vivências urbanas da cidade natal destoavam daquela paisagem bucólica, representadas por arbustos retorcidos emergindo da vastidão lamaçal do mangue.
Ao aportar, os primeiros passos dedicados à nova morada, pouco imaginariam que seria o início de uma peregrinação em busca pela representatividade de um povoado esquecido, composto, majoritariamente, por agricultores e pescadores pobres e analfabetos.

Sofia cativou-se com a vizinhança, como um fascínio maternal. Na nova rotina, descobria uma semelhança mútua entre ela e eles: mesma pobreza, a mesma simplicidade, a mesma fé, até mesmo, a mesma cor da pele. O que lhe diferenciava era o olhar para as necessidades da população e o desejo de transformá-la, reagindo.
Devota de Santa Rita e São Judas Tadeu, notou a ausência de uma liderança católica na localidade. Não tinha capela, “e ninguém conhecia padre”, destacou Salete. A catequese era longe. Longas horas de caminhada e canoa tornavam o caminho perigoso. A nova moradora sabia que, naquela época, a presença do padre nas comunidades interioranas era a única liderança social presente, onde o povo identificava nele o patriarca capaz de ampará-los e representá-los diante dos poderes. Para Sofia, Jaguaruna era uma representação mais ampla do que foi sua casa órfã de pai.
Em uma manhãzinha, a recém-chegada sentiu-se confiante para atravessar de canoa a Baía da Babitonga em direção à sede municipal, ainda São Francisco do Sul. Ao chegar na paróquia, usou de todos os argumentos legítimos para convencer o padre sobre a necessidade de construir uma capela na localidade, e de sua presença, periodicamente, dentro dela. Nunca saberemos se a conversa foi longa ou curta. A certeza do convencimento são as estruturas firmes da capela São Judas Tadeu, ainda presente ali, e das lembranças dos filhos de Sofia que ainda se recordam do padre pernoitando na casa da família, após a missa. Posteriormente, quem sabe, o convencimento foi de ambas as partes. Não havia catequista; uma missão entregue nas mãos da dona da casa.

A dedicação da nova catequista de Jaguaruna fazia com que a população identificasse nela a recente segunda necessidade da localidade: uma professora. Ainda lamentavam a morte da docente anterior e aguardavam receosos com a demora da vinda de uma substituta. Ela nunca aparecia.
No primeiro momento, Sofia não aceitou. Sentia-se iletrada, incapaz; tinha só a quarta série. Acreditava ser inferior demais para uma profissão grandiosa. Os dias se prolongaram e a chance de aprender foi se despedindo com eles. A nova professora não apareceu. Um desânimo abateu-se em quem almejou ver o filho alfabetizado, na tentativa de romper o ciclo da miséria, virando doutor ou só aprender a decifrar as palavras da bula.
O silêncio do poder público à Jaguaruna os fadava ao, de fato, esquecimento, que perpetuava novas gerações do analfabetismo, de avô para pai, de pai para filho. A emergência da ocasião gerou um novo convencimento. Talvez, o mais sublime da vida de Sofia, forçando-a a um encontro com sua realização pessoal. Ela sabia do quão precioso foi para si aprender a ler e escrever; uma dádiva que deveria ser compartilhada; um olhar do outro lado do muro, onde se decidem nossos destinos e dos nossos filhos; a chance de reinventá-lo a sua madeira; os ribeirinhos ouvidos e lembrados. E assim se fez uma nova professora.
Quase 70 anos depois, a estudante de medicina Noemi Röeder, 20 anos, bisneta de Sofia, destaca o orgulho pela escolha certeira da matriarca em optar pela alfabetização dos pobres.
“A vó Sofia não é só um exemplo de professora, é, acima de tudo, um modelo de ser humano, serviu a comunidade sem perspectiva alguma de recompensa. Sempre foi referida por todos como uma boa feitora, nunca deixou suas poucas condições serem motivos para negar ajuda, facilmente deixaria de comer para entregar aos mais necessitados. Embora não seja garuvense de nascimento, representa tudo que, em essência, um bom garuvense é: hospitaleiro, bom feitor e dedicado. Vó Sofia é o protótipo do garuvense!”, disse, completando com uma frase do educador Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade; sem ela, tampouco a sociedade muda”.
O caminho da escola
As histórias sobre os caminhos das escolas de antigamente são clássicas. A distância e todos os percalços que acompanhavam alunos e professoras coincidem sobre a dificuldade do acesso à educação. O vento e a chuva sempre apagaram as pegadas deixadas nos caminhos, por Sofia, seus filhos e alunos; as memórias, elas ainda estão aqui, e permanecerão.
Semanas de chuva. Uma chuva que conhecemos bem. Tudo molhava, se alagava, se enlameava. Esfriava. Um caos encharcado que nunca impediu Sofia de cumprir sua função como professora, desde o primeiro dia.
Acompanhada pelos filhos e alunos, seguia à frente; eles ainda se lembram disso; atenta aos perigos que a floresta oferecia naqueles dias de tormenta. Muitas cobras e aranhas deixavam as tocas e esbarravam-se pelos mesmos caminhos costumeiros das jornadas.
Da casa da professora Sofia à escola, somava-se 3 km. Haviam pontes, sempre banguelas, mas, ainda, essenciais para travessias. Uma tábua; uma faltando; outra tábua; duas faltando. Um cálculo analisado a cada passo, com muito medo de cair rio abaixo.
Em alguns pontos, o caminho se estreitava e a mata parecia ainda mais próxima. O vento derrubara árvores, potencializando o desafio. Erguiam-se as crianças por cima; agachava-se para prosseguir. Alguns segundos para recuperar o fôlego. Quando as trilhas se transformavam em pastos, outro perigo espreitava: “os bois bravos”. Com a barriga grande de gestação, ficava um pouco difícil para correr.
Outros obstáculos aquáticos eram sempre os mais desafiadores, pois, em alguns casos, não haviam as pontes e, na ausência delas, nadavam em torno das canelas uma horda jacarés.
“Tinha um trecho muito grande que alagava. A gente ia com água bem por cima do joelho. Às vezes, ela carregava um de cada lado; às vezes, deixava um para trás, para atravessar, e, depois, ia buscar o outro. Era uma água escura, não era branquinha que ‘tu dava pra ver’ a estrada (alagada, no fundo), era muito perigoso, tinha que ir devagarinho”, contou a filha Carmem de Araújo sobre a matriarca professora que não deixava ninguém para trás.
Quando a chuva lhe acompanhava, restava trabalhar ensopada, com a roupa seca pelo calor do corpo; em dias de frio, quando a pele não ajudava a reaquecer, acendia um fogarel para esquentar os pés endurecidos dela e das crianças, antes de começar os estudos.
Das vezes que o filho José de Araújo acompanhou a mãe durante o trajeto da escola, jamais se esquecerá de um episódio marcante. “Lembro de uns dois homens, estavam no caminho, com o carro, e falaram: ‘Os alunos todos descalços’. O outro falou: ‘A professora, também’; eu achei engraçado”, lembrou dos pés sujos de lama que dificilmente conheceram os calçados, pois não havia dinheiro para comprá-los, nem mesmo sua mãe. “Ganhei meu primeiro calçado aos 15 anos”, reiterou Salete.
Ao longo de sua vida, Sofia teve 13 filhos, e as lembranças que ainda permeiam as memórias de Salete, recordam de uma mãe professora grávida, escorando-se pelas árvores, sentindo as dores típicas, no caminho do trabalho. “A gente via que ela passava mal”, lembrou a filha.

Maria de Fátima, Carmem, José, Ana, Célia, João e Maria Salete, filhos de Sofia de Araújo. Foto/Acervo
As distâncias rumo à escola mudavam periodicamente. Tornavam-se mais distantes, ou, até mesmo, dentro da própria casa da professora. A instabilidade do ambiente escolar era causada por não haver um ponto estabelecido de ensino. Qualquer canto com teto e paredes servia, e sempre houve pressa para arranjá-lo. “Não tinha escola, ela ia atrás”, contou Salete.
Normalmente, casas abandonadas por quem desistia da vida difícil do vilarejo se transformavam em salas de aula. Aí regressavam, ou outro reivindicava posse, e a professora Sofia reiniciava a peregrinação de procura por um novo espaço, vasculhando construções por entre os clareiras abertas por colonos. Nos últimos casos, sua casa, a qual morava de favor com a família, serviu como local de trabalho.
Posteriormente, problemas de saúde física e emocional cobravam seu preço à Sofia, como uma significativa hérnia dolorosa na barriga, a qual relutou em operar, pois sabia que o tratamento lhe retiraria, por tempo indeterminado, da sala de aula; e uma pressão alta, que culminou em infarto.
O primeiro dia, os doces e as letras
2022. As escolas estão próximas, há asfalto. Quando é longe, há transporte escolar. Muito mudou, menos a apreensão do primeiro dia de aula. O friozinho da barriga com medo do novo desconhecido. Choros inconsoláveis pela crença de que nossos pais nos odeiam ao ponto de nos abandonar “para sempre” com uma mulher que nunca vimos na vida. Há duas observações sobre esse fato: de que sempre foi assim e que as professoras escondem artimanhas para que seus novos alunos se sintam acolhidos e seguros.
Na época de Sofia, José descreve uma mãe professora habilidosa na arte de agradar os alunos novatos, mesmo que a pobreza a impedisse de oferecer mimos mais refinados.
“Levava coisas muito simples, como pratinho de plástico, copinho; tinha uma bala tatuzinho que era uma delícia, sorvete seco com uma bexiga em cima… O que cativava era a criatividade; ela era incrível”, revelou. Incrível e rigorosa.
Assim como dedicava sua vida pela educação, exigia reciprocidade dos alunos. Os mais desinteressados pelos estudos sempre tiveram problemas com ela.
Dentre outras artimanhas, como gostava de bordar, premiava aqueles que decorassem a tabuada com toalhinhas personalizadas, e o estudo dos números tornava-se mais interessante.
Tendo consciência de sua pouca formação, e da personificação que uma professora gerava na comunidade, como um ser portador de vasto conhecimento, Sofia sempre soube que precisava aperfeiçoar-se, reinventar-se. Com pouco tempo e renda insuficiente para concluir os estudos, dedicava-se à leitura e à absorção do conhecimento popular, identificando com ele as suas demandas. “Ela era muito inteligente, aprendia fácil, tinha visão das coisas, ela metia a cara e ia”, destacou, Salete, a força da mãe que aprendeu, sozinha, a ensinar.

De 1959 a 1982, Sofia, mesmo com apenas a quarta série, e em incontáveis salinhas de aula improvisadas pelas matas de Jaguaruna, e depois na localidade de Mina Velha, formou centenas de alunos, projetando-os para alcançarem degraus mais superiores de educação, garantindo-os uma base fortalecida pela perseverança.
O então aluno Edevênio Francisconi Arceno conta que teve o primeiro contato com a letras com a professora Sofia. Ele lembra que na época não havia pré-escolar em Garuva e sua mãe sugeriu a necessidade de adentrar na primeira série familiarizado com o alfabeto. Ele tinha seis anos.
Hoje, professor pós-graduado em história cultural, Edevânio identifica no estudo da educação, e no cotidiano escolar, que sua professora, mesmo com pouca formação, era uma grande visionária na temática da alfabetização.
“Na sua visão, sempre à frente de seu tempo, ela vislumbrava a necessidade de ter uma pré-escola, de ter um contato com as letras antes, sem um compromisso. Esse contato deveria ser de forma lúdica, não precisava ter um retorno, simplesmente, que as crianças tivessem a intimidade com as letras”, contou.
Para Edevânio, que adentrou à escola lendo e escrevendo graças à professora, as técnicas de alfabetização aplicadas por Sofia eram semelhantes às de Paulo Freire, reconhecido internacionalmente pela criação de modos acessíveis, práticos e eficazes de ensino.
A sopa e a fome
Abacate, banana e farinha de mandioca; às vezes, banana e farinha; às vezes, abacate; às vezes só farinha; às vezes, nem farinha, nem banana, nem abacate. Maria Alves, aluna de Sofia, lembra de uma infância pobre em Jaguaruna, descrevendo o que tinha, quando tinha, para comer, em sua infância. Quando não tinha, doía de verdade.
“Eu tinha uns 11 anos; é muito triste você querer comer e não ter nada. Naquela época, era tudo muito difícil, mas meus pais sempre tentavam nos dar do que comer. Era muito ruim”, lembrou.
Maria foi uma das incontáveis crianças brasileiras que ainda vão para a escola com fome, na ânsia de que lá encontrarão a primeira e única refeição do dia.
Quando sugerida para voltar no passado e lembrar de sua professora do primário, a aposentada é enfática ao destacar duas dádivas advindas da mestre: a alfabetização e uma sopa, uma esperada e deliciosa sopa.
Carmem lembra que não havia merendeira na escola, uma função também ocupada por sua mãe, que dividia suas preocupações entre ensinar e alimentar, à medida que tinha conhecimento das situações precárias que muitos dos seus alunos viviam. A situação se agravava quando as autoridades da época não forneciam o alimento dos alunos. A fome sempre teve pressa, uma pressa vista por quem viveu no meio de onde ela habita.

“Quando ela não tinha merenda do governo, às vezes, ela fazia comida, fazia uma sopa; era, às vezes, com coisas plantadas ali. Ela tinha uma horta na escola que ela cuidava com os alunos”, disse.
Carmem lembra que quando a mãe saía para fazer a tão esperada e preciosa merenda, ela passava uma lição e todos ficavam “quietinhos” estudando. “Não é igual agora, antigamente, ficavam quietinhos, porque a educação era outra”, destacou.
A sopa era servida um a um, e a energia parecia voltar. O gosto é lembrado até hoje, pois a fome torna-se inesquecível para quem foi tocado por ela, assim como aquilo e aquele que a matou. Os alunos pouco podiam imaginar que a dispensa da professora também era escassa. Ainda assim, dividia o que tinha, mas silenciava-se quando os próprios armários se esvaziavam. “Ela era muito dedicada. Cuidava dos alunos como se fosse filho dela. Não tinha muito, mas dividia o que tinha”, reiterou Carmem.
Se a merenda faltava, o material escolar se mostrava como ítem de luxo. Salete, hoje, lembra com humor dos cadernos que a mãe arranjava para os alunos e outras habilidade de improvisar. “A mãe comprava o lápis e dividia em três; cada um, um pedaço”, contou.
A injustiça

Professora, merendeira, “a psicóloga de Jaguaruna”; a benzedeira, a catequista; às vezes, até parteira. Sofia foi induzida a ocupar espaços onde os vazios causavam desolação em uma comunidade negligenciada; porém, mesmo que ascendesse como uma liderança comunitária, também foi condicionada ao esquecimento pelo poder público da Garuva recém-emancipada. Passada de mão em mão, de São Francisco do Sul ao novo município, os habitantes daquela comunidade ainda eram vistos como os mesmo, fadados a viverem como seus pais.
A cada mês, Sofia era solicitada para reuniões na sede de Garuva, atual centro do município. Na ocasião, aproveitava para buscar seu salário como professora. As filhas ainda lembram de acordar de madrugada para acompanhar a mãe no escuro, guiadas por uma lamparina, até um certo ponto do caminho. Quando o sol surgia na linha do horizonte de Itapoá, elas regressavam para cuidar dos irmãos mais novos e Sofia continuava o percurso, à pé.
No primeiro dia de caminhada, recebia comida dos amigos que cativou ao longo da estrada. A comunidade ficava admirada com a disposição da professora peregrina; quando o cansaço prevalecia no meio da jornada, batia na porta de um daqueles, para dormir, e era recebida com alegria e honras. No outro dia, cedinho, seguia viagem.
Havia ônibus, mas a professora não tinha dinheiro para pagá-lo e a jornada, que iniciava em Jaguaruna, demorava dois dias. Das vezes que restavam-lhe algumas moedas, embarcava quando chegava na localidade de Mina Velha, em direção do Centro. Às vezes, ganhava carona; em outras, perdia a condução.
Toda vinda, mesmo que cansativa, era movida pela esperança do salário resultando em comida para os filhos, o acréscimo de mais legumes nas sopas dos alunos, novos lápis para dividir em três pedaços, outros bordados e sorvetes secos. Uma ilusão que desmoronava quando seu pagamento, por incontáveis vezes, foi negado.
Não há uma precisão entre os filhos de quanto tempo Sofia de Araújo trabalhou como professora sem receber pelo trabalho. José sugere sete anos. Mas, Salete, uma das mais velhas, expõe a magoa que ainda machuca a família, pelas lembranças da desolação de uma mãe professora que costumava manter a renda da casa, na constante ausência do marido e seu salário.
No final da vida, passou a lecionar para alfabetizar, também, jovens e adultos, durante a noite. Também não há certeza se recebia salário pelo serviço prestado. E o caminho, mesmo exausta, nem sempre foi local para encontrar tranquilidade. “Sem iluminação, obviamente, algumas pessoas de mau gosto já chegaram até a assustar ela”, contou, Noemi, uma das histórias que ouviu sobre a bisavó.
Para suprir a demanda e amenizar a pobreza, passou a trabalhar com os filhos nos bananais. De manhã, o giz e a lousa; a tarde, facões e caixotes de madeira; à noite, outro giz e outra lousa.
João

Um comportamento atípico destoava da classe e causava estranheza. Parecia incompreendido. Tinha pele escura, baixa estatura; entre 7 e 8 anos. Seu nome era João. Salete ainda se recorda daquele menino, colega de classe, que tornou-se o foco das “judiações” dos demais alunos.
Em uma época onde não se havia diagnótico de autismo, tudo o que atravessava a margem do que era considerado “normal”, classificava-se como louco, e o que era louco deveria ser segregado, banido, perseguido. João era o “menino louco” da pequena escola.
Havia alvoroço da classe em tordo do menino João. As folhas de seu caderno eram rasgadas pelos outros colegas. A perseguição constante chamou a atenção da professora Sofia que passou a defendê-lo, como lembra a filha. Em sua classe, como cada aluno, ele também era bem-vindo.
Ao notar que João precisava de um olhar mais profundo e inclusivo, identificou suas necessidades, e descobriu que o pequeno também sofria com a incompreensão da família.
” A própria família rasgava os cadernos, e a mãe dava o caderno pra ele. Ele dizia que o pai ia brigar”, contou.
Com a atenção da professora, que estava aberta para a reinvenção, atenta às necessidades, João conseguiu terminar os estudos. “Minha mãe tinha paciência, ela dava jeito pra tudo”, descreveu, Salete, a característica da professora inclusiva que tornou-se um mãe inclusiva e de luta.
A Rosa de Sofia
Sofia de Araújo contabilizou 11 gravidezes ao longo da vida. A penúltima filha foi batizada com o nome de Rosa, e, assim que nasceu, como todos os outros irmãos, foi absorvida pela rotina conturbada de uma professora líder comunitária.
Na última gestação, deu à luz às trigêmeas. A chegada das três meninas Marias foi tão expressiva para a família, e toda a comunidade, quanto a morte de duas delas que, ainda bebês, faleceram simultaneamente de forma inexplicável, num prazo de 24 horas. Elas foram sepultadas no único caixão feito para uma delas. Dos poucos meses que viveram, foram acometidas pela pobreza familiar. “Não tinha nem leite ‘pras’ meninas; tomavam um caldo de feijão”, lamentou a irmã Salete.
Calejada pela tristeza da perda das filhas, Sofia sempre contou das vezes que admirava ver as três pequenas brincando de esconder e, que, após a morte de duas, a sobrevivente costumava continuar com as brincadeiras, procurando pela casa as irmãs que nunca apareciam.
Próxima de completar o primeiro ano, Salete e a mãe, que se revesavam nos cuidados de Rosa, identificaram na menina uma febre que não cessava. “Ela já ficava em ‘pézinho’ no berço”, lembrou sobre a irmã que minguava aos poucos.
Como não havia estabelecimentos de saúde no continente, a única solução estava do outro lado da Babitonga, mas, uma tempestade que castigava a região há dias impedia a travessia de canoa. A solução provisória sempre foram os chás; mas, no caso de Rosa, não houve efeito para apaziguar sua enfermidade.
A tormenta passou e, às pressas, Sofia levou a criança ao hospital francisquense. O diagnóstico abalou a família: uma meningite que causara sequelas mentais irreversíveis.

A ideia da certeza de um suposto castigo de Deus, representado no nascimento de uma criança deficiente, causava vergonha em inúmeras famílias da época, induzindo as pessoas a esconderem os filhos, como uma madeira de tentar abafar, também, os cochichos sobre o possível pecado que causara a reação divina. Um conceito que se estendeu para dentro da casa de Sofia.
De acordo com os filhos, o pai Ercílio suspeitava que a doença da filha foi o peso da mão de Deus. Passou a aprofundar-se na bebida e na ausência da casa. Impaciente com o comportamento de Rosa, que era agressiva e defecava nas próprias roupas, os embates entre ele e Sofia, que sempre defendeu a filha, tornaram-se constantes. “Ele não tinha paciência”, completou Salete.
Rosa crescia. A pobreza e os poucos estudos sobre saúde mental da época não favorecia quaisquer mecanismo para amenizar as constantes convulsões e surtos agressivos, que sempre eram o estopim para a pior das sugestões que a mãe ouvia: descartá-la em um dos “hospitais de loucos” mais próximo.
Em uma das caminhadas de Rosa ao lado da mãe, que não tinha vergonha em tê-la e mostrá-la, a menina teve um surto em público. A agressividade assustou quem viu com ar de rechaço e sugeriu: “Você tem que internar essa louca”, lembrou, Salete, as palavras que sua mãe ouviu e recolheu para si em um sofrimento solitário.
Sofia identificava na sociedade o severo estigma contra as pessoas com alguma funcionalidade atípica da mente, das mais leves às mais expressivas, como manifestava-se em Rosa enquanto a menina se desenvolvia. Um estigma que não permitiu adentrar em sua sala de aula, onde tinha autoridade.
Enquanto transformava sua vida para suprir a demanda que a filha exigia, observou sutilmente indivíduos com deficiência mental desaparecendo dos núcleos familiares de Garuva, com informações de que foram enviados para os famosos “hospitais de loucos” presentes, principalmente, em grandes centros urbanos, onde supostamente receberiam tratamento de qualidade.
Os espaços, também chamados de “hospitais colônia” eram, na verdade, utilizados para concentrar e aprisionar todos aqueles que não eram ‘bem-vistos’ pela sociedade da época, como: alcoólatras, deficientes físicos e mentais, homossexuais, mães solos, moradores em situação de rua e prostitutas.
Eles partiram, e o que retornou, posteriormente, uma a uma, não eram notícias de melhoras, mas, sim, aquelas que causaram pesar em Sofia. “Gente mais adulta; mandavam pra lá e lá morria”, contou Salete.

Identificando a certeza do triste fim de quem era enviado, Sofia iniciou uma campanha para evitar novas partidas, aconselhando as famílias a permanecerem com seus filhos com deficiência, e não abandoná-los, mostrando-se como exemplo ao impedir que a própria filha fosse enviada ou escondida. “Ela tinha vontade de mudar”, destacou, a filha, o desejo da mãe de uma sociedade inclusiva.
O aluno Edevânio, que passou a frequentar a casa de Sofia, lembra saudoso da menina Rosa, a qual apelidou de Lene. Ele conta que o comportamento da professora em relação à filha destoava de toda a sociedade, pois, ao contrário de escondê-la em quartos e sótãos, como o costume, Rosa era livre para brincar na rua, para conviver com as outras crianças, com os adultos que visitavam a família; pela mãe, era permitida ser vista, apresentar-se como indivíduo digna de pertencer a esse mundo, a essa sociedade.
” A professora já tinha essa visão diferenciada, de que a interação era necessária para essas crianças. Talvez, por ela ser educadora, por ter uma visão à frente do seu tempo. A gente aprendia muito, pois ela desmistificou”, ressaltou Edevânio que, ao tornar-se professor, afirma que sentiu-se mais familiarizado, e com senso de inclusão, para trabalhar com crianças excepcionais por ter convivido com uma delas durante a infância.
Salete sugere que devido o comportamento incisivo da mãe, pela inclusão, Sofia pôde ter evitado que inúmeros moradores de Garuva, com deficiência mental, fossem destinados a esses locais de segregação, onde, possivelmente, morreriam esquecidos e solitários.

O indigente
Os últimos atos da vida de Sofia em favor dos pobres virou assunto entre rodas de conversa do município garuvense, e ainda é lembrado pela família. Um gesto simbólico que demonstrava seu caráter misericordioso.
Maria de Fátima Fagundes, a filha caçula de Sofia, tinha 14 anos na noite em que o pai chegou em casa contando que o corpo de um indigente estava abandonado, sozinho, no cemitério de Garuva, e, assim, seria enterrado. Os primeiros pensamentos que pairaram na imaginação de Sofia foram os incontáveis causos sobre os perigos fantasmagóricos de se visitar o repouso dos mortos de madrugada, mas a misericórdia por quem seria sepultado sem o mínimo de dignidade venceu.
Às pressas, vasculhou as gavetas onde encontrou um punhado de velas, retirou um lençol branco do armário, e buscou pelas mãos já trêmulas da filha, para acompanhá-la. A família havia se mudado para o Centro do município, próximo da ponte do rio São João, mas o percurso durou uma hora.
Maria revela que nunca passara tanto medo na vida, à medida que se aproximava do local, em volta de túmulos, com a certeza da presença de um corpo exposto. Mais adiante, jazia o falecido, jogado de qualquer jeito, torto, acima do altar de uma pequena capela. Vendo a triste cena, Sofia o cobriu com o lençol, acendeu as velas ao seu redor e passou a rezar.
Piedosa, velou um trabalhador que atuava nas aberturas de estradas, e que morrera longe de casa, da família. Deu ao seu corpo, mesmo que vivera uma vida pobre, a digna despedida que podia oferecer; à sua alma, o alento aos indigentes esquecidos. Seus feitos ainda emocionam a geração seguinte.
“Geralmente, quando falamos de amor por uma pessoa, foi pelo que vivemos com ela, mas, com a minha vó Sofia, é pelo que cresci ouvindo sobre ela”, afirmou a comerciante Ana Lucia de Araújo Peixe Zimmerman, neta da professora.

Ana conta que nasceu tempos depois da morte da avó, mas sempre sentiu orgulho da mulher que mudou a vida de muitas pessoas pobres, por meio da educação, da atenção para quem necessitava, além de dar luz à temática da inclusão para pessoas com deficiência. “Uma mulher forte, temente a Deus, humilde, pronta para servir”, completou.
Para sempre, Sofia
Se a história de Sofia tinha as estradas de Garuva como os maiores palcos, adornada por uma plateia que sempre a admirou, as cortinas do grande espetáculo se fecharam em uma última andança, no caminho da casa da filha. Era véspera de Tiradentes, de 1982, quando a professora, aos 58 anos, sucumbiu com um infarto, falecendo no dia do feriado. Seu corpo foi enterrado no Cemitério Municipal de Garuva.
Ao longo da vida, Sofia nunca hesitou em mostrar-se como uma mulher corajosa. A noite escura não a fez estremecer, nem a solidão das ruas, nem as incertezas do dia seguinte, nem mesmo o embate contra poderosos injustos. Mas havia, escondido em seu silêncio, um medo que se revelava enquanto a saúde deteriorava.
“Ela tinha muito medo de morrer e deixar a Rosa”, contou Salete.
Um medo comum de qualquer mãe de filhos excepcionais, dependentes daquela paciência e daquele amor que apenas ela consegue explicar. Rosa, que ficou aos cuidados das irmãs, morreu cinco anos depois, com 17 anos, vítima de uma convulsão.

A morte de Sofia de Araújo silenciou uma voz primordial na luta pela inclusão, em Garuva. Um silêncio que durou uma década. O surgimento de outras vozes que davam nova vida aos seus ideais surgiu dos próprios alunos.
No início da década de 90, Edevânio iniciou uma pesquisa para contabilizar as pessoas com deficiência que moravam em Garuva. Ele admite que, na época, ficou surpreso com o resultado, “devido o tamanho do número de crianças que tinha, e porque a gente não sabia, porque essas crianças estavam mantidas quase que em segredo”, afirmou.
Ao finalizar o levantamento social, identificaram a necessidade de um centro de apoio às pessoas com necessidades especiais e seus familiares, e fundaram a Associação de Pais e Alunos Excepcionais, a Apae de Garuva.

Sete anos depois, sob a presidência de Edevânio, foi inaugurado no mesmo prédio a Escola Especial Sofia Araújo, uma homenagem sugerida por seu aluno para uma instituição que, até os dias de hoje, constrói pontes entre a educação especial e a escola regular, por meio da inclusão, oferecendo atendimento especializado aos alunos, promovendo qualidade de vida e eternizando o legado da professora.

Texto/Herison Schorr
Jornalista formado pela Faculdade Bom Jesus Ielusc