Autismo: como o cheiro da orquídea olho-de-boneca se tornou meu antídoto contra depressão sazonal

2-R42-L2-1568-10 Tintoretto, Christus in der Vorhoelle Tintoretto, eigentl. Jacopo Robusti 1518-1594. 'Christus in der Vorhoelle', 1568. Oel auf Leinwand, 342 x 373 cm. Venedig, S.Cassiano, Presbyterium. E: Christ in Limbo / Tintoretto / 1568 Tintoretto, real name Jacopo Robusti 1518-1594. - 'Christ in Limbo', 1568. - Oil on canvas, 342 x 373cm. Venice, S.Cassiano, presbytery.

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Elas florescem em setembro nos jardins das nossas avós, nonas e omas, despertando memórias antigas na presença de nossas matriarcas catarinenses. Nos chalés dos sítios onde adornam palmeiras e xaxins; nas zonas urbanas onde cultivamos essa nostalgia nos poucos espaços verdes, as orquídeas olho-de-boneca são consideradas, no Sul do Brasil, as mais populares entre a espécie da planta.

Na minha infância, o florescer da orquídea olho-de-boneca era considerado um marco no ano, onde a minha vida se transformava a partir desse momento. Aguardava todos os anos, ansioso, o desabrochar das primeiras pétalas, para sentir seu cheiro, e, quando sentia, meu cérebro era tomado por uma forte sensação de prazer, de esperança e de felicidade, importantes para o resto do ano, após meses considerados “desafiadores”. 

Eu não podia imaginar que esse ritual, que cumpri durante todos esses anos, foi essencial para regenerar minha mente autista, ainda sem o diagnóstico, prejudicada pela depressão sazonal. 

Um desafio misterioso

Julho apontava no calendário e me instigava a vasculhar os jardins da minha avó, no município de Garuva, Santa Catarina, para encontrar as primeiras manifestações da flor, que emergiam como pequenas bolinhas nos caules da planta; vê-los, já me despertava ânimo e alívio. E esse era considerado um comportamento estranho e automático. 

Orquídeas olho-de-boneca tradicionalmente adornam jardins em Santa Catarina. Foto/Herison Schorr

Com o início de agosto, aquelas bolinhas evoluíam para botões, e a ansiedade até me fazia levar algumas broncas da minha avó, quando eu os abria antes do tempo, danificando algumas flores. Como contado na abertura da reportagem, o florescer da orquídea olho-de-boneca era um marco importante e esperado da minha vida na primeira infância. Havia pressa. Uma pressa que me incomodava estranhamente. Hoje, quando observo esse momento do meu passado, lembro de uma sensação, de fato, adversa. 

Era como se eu estivesse participando, durante meses, por uma maratona extremamente desafiadora e cheia de percalços, que me deixava esgotado, nervoso, triste; tirava meu apetite e meu sono. E a linha de chegada se mostrava diante de mim com a abertura dos primeiros botões da orquídea.  Sentir seu cheiro era a premiação compensatória, que sarava minha mente sobrecarregada daquele período, regenerando-a com uma forte dose de ânimo oferecida pelo perfume da flor.

O descobrimento de outros cheiros estimulantes

No despertar da primavera havia, também, o despertar das minhas sensações olfativas, como se eu readquirisse vida por meio dos cheiros bons exalados nesta época do ano. Quando buscava, primeiramente, pelo perfume da orquídea no auge da floração, identificando que ele trazia pensamentos positivos à medida que inibia os negativos.

Naqueles mesmos jardins, descobri outras possibilidades aromáticas durante as brincadeiras ao ar livre, como: o cheiro da flor de laranjeira; o cheiro das folhas de tangerina, as quais eu macerava continuamente próximo do nariz, e o cheiro de uma árvore peculiar que florescia na chácara da minha bisavó, onde apreciava visitar devido o sentimento de pertencimento que me gerava ao ter a companhia de primos e irmãos nos grupos de brincadeiras com os animais, muito ao contrário da escola, onde eu era mais solitário.

Flores de laranjeira desabrocham nesta época do ano, exalando no ar um perfume adocicado que pode trazer lembranças boas. Foto/Herison Schorr

Enquanto meu cérebro registrava os perfumes dessas plantas, ele também resguardava, com os aromas, as lembranças daqueles dias, geralmente, tardes animadoras com a presença do calor, do Sol, das árvores, do rio e dos pés sujos de terra.

Quando estive no Jardim Botânico de Curitiba e senti o cheiro daquela árvore da casa da minha bisavó foi como se eu pudesse ouvir, décadas depois, naquele lugar distante de Garuva, os cacarejos dos garnisés correndo atrás das nossas bagunças, e o barulho que fazíamos brincando no riacho próximo; um sentimento de felicidade, de pertencimento, de amizade, de vida.

Com o passar dos últimos meses do ano, outro perfume inundava toda a natureza e me trazia ainda mais energia e satisfação, o conhecido:  “Cheiro de Natal”. Quando identifiquei, pela primeira vez, que em determinada época do ano, geralmente no final de novembro, esse perfume se tornava mais presente, desenvolvi, naquela infância, possibilidades de senti-lo com mais primor. 

Lembro de quando eu ficava horas deitando no chão com o nariz na fresta da porta para a rua, aguardando a brisa das noites de verão trazer esse perfume, de forma refinada, por debaixo da porta. Era um comportamento estranho e viciante, pois estimulava meu cérebro para realizar as tarefas finais da escola.

A descoberta do misterioso desafio

No final da adolescência, aprimorei o que se tornou meu primeiro emprego: a fotografia. Esse aprimoramento foi desenvolvido nos ensaios externos que tornou-se meu carro-chefe, na ausência de um estúdio, sendo um diferencial no mercado fotográfico do meu município, e atraindo clientes. 

A ampliação da minha renda me dava conforto e a possibilidade de se obter bens, gerando aquela conhecida sensação de independência e responsabilidade, e foi nesse período que aquele velho desafio se mostrou às caras. 

Manhãzinha de sábado. Depois de algumas semanas sem trabalho, aquela seria a oportunidade necessária de uma força na renda, em declínio, com um ensaio marcado para após o almoço. Porém, ao abrir as cortinas, uma frustração cinzenta.

Tornou-se um verdadeiro incômodo quando eu marcava um ensaio fotográfico, e, no dia esperado, ele amanhecia feio, nublado, chuvoso, obrigando a remarcar o trabalho para a semana ou o mês seguinte, ou, até mesmo, cancelar, pois a chuva não havia parado por semanas. 

Foi a primeira vez que identifiquei como esses dias nebulosos e chuvosos comuns no Sul do Brasil eram incômodos, me dando um “start” para as frustrações da infância, quando eu era surpreendido pelos dias de chuva que arruinavam minhas brincadeiras no jardim e pelas sensações negativas que surgiam ao me molhar, no caminho da escola, ainda que fossem por algumas gotas que escapavam do guarda-chuva, ou só de ouví-las caindo no telhado, como uma rajada ensurdecedora de metralhadora, devido a audição também aguçada, acima do normal.

“Chuva na Garuva” é um trocadinho antigo entre os moradores do município para se referir aos contínuos dias chuvosos no município. Foto/Herison Schorr

Anos depois estava, eu, enfurecido pela chuva que me impedia de realizar minhas caminhadas sagradas para meu ânimo, sempre realizadas no final da tarde. Meus exercícios físicos na academia também eram comprometidos, pois a nebulosidade me causava um cansaço acima do normal. O barulho era absurdamente incômodo e as gotas que caiam na minha pele passaram a causar desconforto extremo, uma espécie estranha de dor.

As sensações negativas causadas pelos longos períodos sem a presença do Sol tornaram-se mais expressivos e prejudiciais durante a vida adulta, enquanto adquiria mais independência, pois os períodos de “tempos feios”, além de comprometer a minha fonte de renda, me instigava pensamentos de fracasso e desânimo, de baixa autoestima, algo que se estendeu à faculdade, quando iniciei o curso de Jornalismo, em Joinville

Meu desempenho escolar e acadêmico nunca foi dos melhores nos primeiros semestres do ano, hoje identificando o motivo. Um dos pontos que me auxiliava na recuperação, de fato, era o revigor dos cheiros, tanto da orquídea como, posteriormente, outros aromas. 

Uma espécie de árvore plantada em frente ao prédio da minha faculdade exala, no final do ano, um adocicado perfume que tornou-se fundamental para estimular o fôlego necessário do final do semestre, reorganizando meus pensamentos desestabilizados pelos períodos desafiadores de chuva e nebulosidade contínua, e auxiliando para a entrega dos trabalhos e a realização das provas finais.

Dias contínuos de chuva

A Serra do Mar, que corta Garuva ao meio, possui, aproximadamente, 1.400 metros de altitude. Apesar de ser uma região exuberante com uma explosão de fauna e flora, e nascentes, sua protuberância geográfica foi o diagnóstico das minhas conclusões ao identificar o motivo das constantes chuvas e longos dias de nebulosidade que pairavam sobre meu município, prejudicando o desenvolvimento das minhas atividades do trabalho, ao ponto de se tornar o tema principal das terapias com a psicóloga.

Foi, nesse período que ouvi, pela primeira, vez o termo “depressão sazonal”, um fenômeno neurológico que pode ocorrer com populações de regiões frias e chuvosas, na ausência contínua de luminosidade, trazendo sensações de desânimo, estresse, perda do apetite e de sono. 

Serra do Mar, em Garuva, gera um bloqueio solar natural durante boa parte do ano. Foto/Herison Schorr

Ao prestar mais atenção na serra, notei que ela “estaciona” em forma de nuvens o vapor vindo do mar a 30 km de distância, fazendo com que o centro do município, onde morava, dificilmente visse a luz solar após às 3h da tarde, durante meses. Outro fator que agravava a falta de Sol no município era, de fato, as constantes chuvas que irrigam a região com as frentes frias, fazendo de Garuva o terceiro município mais chuvoso do Brasil, com cerca de 3.500 milímetros de precipitação por ano. Esse processo continuo de “tempos feios” se inicia em março, com a chegada das primeiras frentes frias e massas de ar polar.

Dias nublados e chuvosos são frequentes em Garuva. Foto/Herison Schorr

O agravamento da chuva

Como jornalista, agora, a chuva contínua – e a nebulosidade como consequência  – não eram apenas um incômodo que atrapalhava meu trabalho, desestabilizando minha concentração para escrever – devido ao  barulho e a falta de absorção de luz solar, que me causava insônia e, consequentemente, a desordem dos pensamentos –  mas, também, tornou-se os temas das pautas devido às consequências dos temporais.

Nos últimos três anos, observei a partir de dados da Epagri/Ciram os recordes históricos de precipitação em municípios do litoral catarinense, como em Garuva, causando enxurradas, estragos e perdas de bens. A chuva e a nebulosidade progressiva atingiu em cheio o período que eu utilizava no processo de regeneração, se prolongando, de forma intensa e duradoura, de agosto até fereveiro do ano seguinte, gerando extremo desconforto que comprometeu toda a minha rotina. É notório na primavera e no verão as tempestades são comuns, mas, o que passou a ser comum, também, foram as semanas progressivas de chuvas torrenciais e a nebulosidade, inibindo a luz solar.

Em fevereiro de 2020, Garuva registrou um recorde de precipitação de chuva, com 716,4mm. O resultado é o maior desde 2013, quando a estação de medição foi instalada no município. Foto/Epagri/Ciram

Analisando as publicações nas redes sociais de moradores da minha cidade, identificava que o estresse causado pela falta de Sol também se instalava entre meus vizinhos, principalmente, com a perda de bens causada pelos temporais. Um estresse contínuo que nos dava sentimento de incapacidade.

Eram dias deprimentes. E essa depressão se expressava por meio de lamentos sobre a dificuldade de reorganizar a rotina em meio a tanta chuva, que não parava por semanas. Desde as roupas que não secavam, dos resfriados, do incômodo em sair para trabalhar abaixo de temporais, ou enviar os filhos para escola, das crianças que não podiam realizar atividades físicas ao ar livre, dos trabalhos paralisados em obras e o mais agravante: os contínuos estragos causados pelos temporais. Haviam os que utilizavam o Facebook para, até mesmo, brigar com a chuva, algo que também fazia, mas discretamente.

A previsão da reabertura do Sol sempre foi uma boa notícia a ser publicada; porém, agora, na vida adulta, com a sobrecarga de compromissos atrapalhados pela chuva contínua, além das perdas, quando imaginávamos que o calor e a luminosidade traria ânimo para a rotina, ocorria o contrário. 

É como se o Sol, e a sua luminosidade, agora, trouxesse lucidez para a vida, e com a lucidez torna-se mais visível os estragos causados pela chuva e nebulosidade em nossas rotinas, em períodos chuvosos onde estávamos anestesiados pelo desânimo do tempo e não conseguíamos reagir. Quando eu era criança, isso também acontecia, mas de forma mais sutil, pois os compromissos de uma criança são poucos, no mais, atividades escolares.

As novas lembranças pelos cheiros

Muitos foram os fatores que me fizeram deixar minha cidade natal; um deles, a necessidade de dias mais ensolarados para reorganizar minha mente sobrecarregada pelos temporais que tornaram-se mais constantes, volumosos e destrutivos em Garuva, onde vivi por 30 anos. O município escolhido para a nova morada foi Porto União, cidade natal do meu pai que fica próximo ao Oeste catarinense, região que ainda sofre as sequelas de uma estiagem histórica.

Se na casa da minha avó materna as memórias eram resguardadas pelo perfume da orquídea olho-de-boneca, na casa da minha avó paterna, na zona rural de Porto União, os perfumes eram reconhecidos pelo cheiro único da sua casa de madeira, do pasto das vacas, e do perfume dos ciprestes presentes no sítio. O município, localizado no Planalto Norte de Santa Catarina, apesar de não ter dias continuamente chuvosos, como em Garuva, é considerado frio nos meses de inverno, com constantes geadas e possibilidade de neve.

Ao me mudar para essa casa onde meu pai e meus avós viveram, estranhamente não consegui identificar esses cheiros peculiares que me traziam boas lembranças das minhas férias aqui, e de todas as brincadeiras que ocorriam com meus irmãos e primos, também na companhia de bichos do sítio. Estávamos no final de março, início do outono. Se por um lado ainda não haviam os aromas que me traziam as lembranças necessárias para meu revigoramento, os contínuos dias de Sol, apesar do frio, foram essenciais para regular meu sono e o meu apetite, consequentemente, minha vida de trabalho e estudos.

Nos diversos dias que amanhecíamos com tempo aberto, mas beirando os 0 ºC, esperava o Sol das 11h para sair e fazer uma caminhada de uma hora antes do almoço. A luz era constante e permitia que minha rotina fosse pautada na presença dele, com um breve passeio pela estrada de terra que corta uma longa floresta alta. Sem o boné, deixava minha cabeça exposta para ser reaquecida timidamente pelo Sol, mesmo que a temperatura não passasse dos 10 ºC e exalasse cheiros mais expressivos. O que acontecia, como consequência, era fantástico: uma enxurrada de ideias positivas essenciais para o meu trabalho. Elas fervilhavam como impulsos contínuos, me obrigando a anotar todas pelo caminho e por em prática no retorno ao trabalho em casa.

Dois meses após minha chegada, apesar da gradativa recuperação com a terapia solar, a sensação ainda era de como se eu estivesse morando em uma casa nova, a qual nunca havia frequentado, sem nenhuma relação afetiva com ela. O ponto de virada foi o início do que chamam de “veranico de maio”.

Como sempre visitei meus avós de Porto União nas férias de verão, as únicas lembranças aromáticas que tenho dessa casa foram adquiridas nesses dias de calor. Quando um calor igual dos dias de verão exalou o perfume da casa, e da natureza em volto, houve em meu cérebro uma explosão de lembranças e sentimentos bons, reverberados pelos cheiros das minhas vivência, aqui.

Atualmente, com o início da primavera, não só esses, mas os demais cheiros estimulantes adquiridos em Garuva também estão presentes em minha nova casa, como as flores de laranjeira e a orquídea olho-de-boneca, contribuindo para o meu bem estar e para auxiliar na minha rotina.

A renascimento da vida pela luz e pelos aromas

A presença contínua do Sol em Porto União foi fundamental para o processo do descobrimento do autismo e no desenvolvimento de muitas atividades, como a reestruturação da minha empresa de comunicação, expandindo-a; a abertura de outra empresa, e o início dos estudos de línguas e para ingressar em uma segunda faculdade. Todas ideias desenvolvidas num período que considerava “desafiador” por causa da falta contínua de Sol em minha cidade natal. Além disso, o tempo ensolarado me proporcionou mais clareza das percepções da minha mente em simbiose com o clima, e de como ela se reinventou de forma improvisada desde à infância.

Durante os testes de inteligência para o desenvolvimento do laudo, foi constatado, apesar de partes onde a mente se torna deficitária, uma eficiência acima da média da inteligência de práxis, que consiste naquela “capacidade de realizar tarefas funcionais e complexas com habilidade e fluidez, envolvendo aspectos sensório motores ou a integração de vários sistemas sensoriais e neuromusculares”, explica Katu Silva, terapeuta ocupacional da Clínica Ludens.

Na infância, buscar os cheiros estimulantes das orquídeas foi uma forma improvisada que meu cérebro criou para se autorregular após as consequências causadas pela depressão sazonal, na ausência de medicações e terapias, pois não se sabia que eu era autista, muito menos o que era autismo.

Com o diagnóstico de autismo, descobri que minha práxis demonstrava desenvoltura desde à infância e pode ser aprimorada para, agora com mais conhecimento, burlar a depressão sazonal.

Ao notar que em períodos de chuva há a desestabilidade da minha rotina, que é totalmente estruturada para dias de Sol, passo a reajustá-la para os dias chuvosos, mesmo trazendo um pouco de desconforto inicial, mas que não evolui ao ponto de se tornar prejudicial. Para a chuva não me atrapalhar durante os momentos que preciso de concentração, uso abafadores sonoros. Se preciso sair para realizar alguma atividade externa de trabalho, me agasalho de uma forma confortável, para não me molhar. Passei a usar botas e prestar mais atenção dos meus pensamentos quando surge qualquer desconforto causado pela chuva e pela luminosidade; quando os dias de nebulosidade se estendem por mais tempo, o que é raro por aqui, assisto, por alguns minutos, vídeos de atividades na praia em pleno verão.

Nos meses de frio, com a falta dos cheiros autorreguladores da natureza, ensinei o meu cérebro a ser estimulado com a descoberta de outros cheiros satisfatórios do inverno: o cheiro do café e do forno à lenha, trazendo sensações positivas, pois foram aromas adquiridos em bons momentos de cafés da manhã colonial no sítio, além de almoços e jantares apetitosos preparados sob a brasa da lenha. Esses reajustes da minha rotina invernal tornaram-se fundamentais para a minha chegada neste período de calor sem muitos danos, mas, ainda assim, gostaria de ter uma experiência de vida em regiões ainda mais quentes e ensolaradas, próximas dos trópicos, apenas para saber como minha mente funcionará por lá.

Estado Anestésico Límbico x Lucidez Primaveril e Juízo Aromático

Num estudo profundo de autoconhecimento, fazendo um resgate do meu passado na minha cidade natal e chuvosa, e o meu presente abaixo da contínua presença do Sol, identifiquei e descrevi de forma minuciosa meus pensamentos durante esses dois momentos do ano, para servir como um modelo de ação próprio. Tornando-os de melhor compreensão, os batizei de Estado Anestésico Límbico, para os meses de nebulosidade; Lucidez Primaveril, para os meses de Sol, e Juízo, para a transição de um para o outro.

Estado Anestésico Límbico

Segundo o dicionário da língua portuguesa, o Limbo, na sua configuração religiosa, é um local para onde vão as almas sem batismo, temporariamente afastadas de Deus, esquecidas e negligenciadas por um tempo, até que sejam perdoadas do pecado original; em uma forma de expressão popular, refere-se a uma perda de memória, ao esquecimento, ao estado de dúvida, de incertezas.

Obra ‘Cristo no Limbo”, do autor veneziano Tintoretto, de 1568. Foto/Internet

Foi em uma manhã de sábado de 2017, na plenitude aromática e ensolarada da primavera, que o Limbo tornou-se um dos pontos principais numa aula de História da Religião do curso de Jornalismo, uma das minhas disciplinas preferidas. Decifrar os conceitos de sua historicidade foi como reviver os meses de outono e inverno em Garuva. Era como se eu tivesse vivido por parte de minha vida no Limbo, sendo lançado a ele em março e aguardando pela absolvição divina, em setembro.

Me recordo claramente daquela grande nuvem escura chegando pelo Sul de Santa Catarina, em Garuva, trazendo a primeira frente fria após as festividades de Carnaval. O que era colorido e alegre, festivo, se escurecia pelas sombras; o que era quente, resfriava; parecia a mãe obrigando o filho a encerrar as brincadeiras de rua e entrar; a cor se resumia em cinza, como a quarta-feira que a celebra.

Acordar e não ver os raios de Sol iluminando a casa pela manhã, na ausência dele, a desgostosa garoa nublada, condicionava minha mente a acreditar numa punição, pois aquele dia jamais seria proveitoso. O primeiro a ser afetado era o apetite, que se perdia; depois, o sono. As ideias confusas não ajudavam no trabalho e muitos erros eram cometidos, piorando a situação pelas consequências. Não havia mais vitalidade para fazer as atividades físicas, o que agravava ainda mais a insônia com o estresse acumulado.

No espelho, uma reação em cadeia deteriorava o meu entorno, a minha aparência. A criatividade se dispersou, assim como as boas ideias para se tomar decisões, assim como os cheiros bons que traziam boas lembranças, dessa forma, como uma misteriosa perda de memória, nem ela mais tinha, levando meu senso de vida. A chuva não parava por semanas e o progressivo barulho das gotas no telhado me deixavam ainda mais desestabilizado. As ações consequentes do clima me tiravam todas as possibilidades de reação, anestesiando pela sonolência.

Lucidez Primaveril e Juízo Aromático

Na infância a luminosidade da Primavera trazia esperança; na vida adulta, ela escarnecia, dando luz o que eu havia feito no inverno, ou melhor, o que havia deixado de fazer. Agora, o calor parecia ardente. Como se me tirasse das sombras e me mostrasse, de forma vergonhosa, sujo. Um desconforto de quando se acende a luz rapidamente em um quarto, durante a madrugada.

Instigado pelos pensamentos ruins resultantes da falta de sono e apetite, o despertar do Sol resultava em autojulgamento de fracasso em comparação com os outros. Nos momentos iniciais, os pensamentos me induziam a acreditar que eu era a pessoa mais insignificante diante de tanta vitalidade alheia, demonstrada em fotografias de festas e viagens, e que eu não era merecedor de usufruir daquela felicidade que a estação das flores oferecia.

Era neste momento que as orquídeas olho-de-boneca, e os demais aromas, se faziam presentes, resgatando com seus perfumes os bons momentos do meu passado, trazendo lucidez; elucidando no balanço do julgamento que eu também era merecedor de vivenciar as belezas dos meses de luz, e de todas as outras estações, pois já havia superado por muitos desafios até aqui.

Revigorado, as lembranças dos cheiros reorganizavam meus pensamentos, que me ajudavam no processo de renovação, além de me dar a força necessária para esse período de transformação em direção ao meu futuro.

Um novo olhar sobre o setembro amarelo em Santa Catarina

Santa Catarina é conhecida nacionalmente pelo turismo das praias, no verão, e pelo clima frio que atrai milhares de turistas durante os meses de outono e inverno, em busca das belas paisagens geradas pelas geadas e pela neve. Outros pontos que dão destaque ao estado são os elevados Índices de Desenvolvimento Humano.

Ocultado pela beleza natural e pelo bem estar humano, o estado registra um dos maiores índices de depressão e suicídio do Brasil. Segundo especialistas, a situação se agrava com os meses de calor, tendo no mês de setembro um período primordial de campanhas de prevenção.

Observando este comportamento humano em Santa Catarina, para tentar compreendê-lo, busco em meu próprio comportamento cerebral a hipótese do que pode ocorrer nessas épocas do ano na população catarinense, agravando, possivelmente, os quadros de depressão e suicídio no estado.

Penso que os moradores do estado também sofram com o Estado Anestésico Límbico semelhante a que ocorria com minha mente autista, causado pelos longos períodos de frio, nebulosidade e chuva, entre março e agosto. A falta de luminosidade, possivelmente, também prejudica a qualidade do sono, que prejudica a qualidade da concentração, que desorganiza os pensamentos necessários para realizar as atividades do dia a dia, como o trabalho. Como, culturalmente, o trabalho está ligado a estabilidade financeira e, assim, a autoestima, desestabilizá-lo agrava o processo depressivo. A insônia também estimula uma espécie de distorção da realidade ligada a forma como nos vemos, deteriorando, também, diretamente, a autoestima, principalmente da população mais jovem.

Com o retorno dos dias contínuos de Sol, e de calor, na primavera e no verão, a lucidez que se desperta em mim possivelmente, também, desperta nas pessoas, retirando a anestesia gerada nos meses de outono e inverno e dando-as uma noção mais expressiva e, até mesmo, distorcida/exagerada das consequências geradas pela desestabilização dos períodos frios e nebulosos.

Comummente, nesta época do final de ano, acompanhamos as inúmeras postagens de fotos em viagens de férias; festas diurnas e, principalmente, noturnas; conquistas, como a aprovações em concursos e vestibulares e formaturas; presentes recebidos, e, principalmente, a publicação corpos definidos na praia, por exemplo.

Nestes períodos de Lucidez Primaveril, possivelmente, as pessoas acometidas pela depressão sazonal e por suas consequências que adentram as estações de calor, começam, também, a comparar suas vidas com a vida de outras pessoas projetadas nas redes sociais, gerando a sensação de fracasso, baixa autoestima e desinteresse pela vida. Com a memória deteriorada, e sem métodos estimulantes de ressensibilização, como a própria terapia cognitiva, acabam esquecendo dos bons momentos de sua vida e de suas capacidades positivas

Outro comportamento que identifiquei, ainda que haja necessidade de mais pesquisas para aprofundá-lo, são os inúmeros acidentes que ocorrem em Porto União no dia em que o Sol volta a aparecer no município, após alguns dias chuvosos. A irritabilidade e a desatenção no trânsito nesses dias pode, também, ser uma consequência da desestabilização emocional, com menor intensidade, causada pela falta de luz solar.

Em uma perspectiva de que as nossas mentes funcionem de forma semelhante, acredito na possibilidade de que as pessoas possam aprimorar suas rotinas nos meses de outono e inverno, por meio de planejamentos, anotando todas as possibilidades positivas a serem cumpridas no período e após ele, além de registrar, também, os pensamentos ruins que surgem nesta época do ano, para ter melhor lucidez ao lidar com eles, acompanhado de um profissional da área da psicologia. A terapia aromática também já se tornou uma realidade, onde resgatamos cheiros afetivos de nossa infância para ser usado durante o tratamento.

Uma nova possibilidade

Enquanto escrevia essa reportagem, foram os inúmeros acréscimos que costurem por entre o texto, complementando. As novas ideias são resultantes dos perfumes que, a cada dia, me fazem lembrar das minhas capacidades.

Neste domingo (17), após macerar uma folha de laranjeira, o perfume me levou ao colo de meu pai, professor de Geografia e com ideais ligados à preservação do meio ambiente, há quase 30 anos atrás, em um flash de lembrança que me fez ver ele macerando uma folha de laranjeira próxima ao meu nariz, e eu fazendo um gesto de que havia gostado de senti-lo, ao ponto de despertar minha curiosidade olfativa para procurá-lo não só por aquele, mas, também, outros perfumes do jardim.

Esse comportamento de levar bebês aos jardins para sentir o cheiro das orquídeas foi rememorado por mim, na sequência, quando aprendi com meu pai a levar meus irmãos mais novos próximos às flores, para cheirá-las e ouvi-los falando “atiii”, seguido de um sorriso que demonstrava a aprovação ao cheiro gostoso.

Minha infância autista foi regida pelo Sol e pelos cheiros, dádivas oferecidas a todos pela natureza, imperceptíveis às rotinas exaustivas. Vejo como sorte a oportunidade que tive para moldar todos os meus sentidos aguçados em meio às brincadeiras nos sítios e seus jardins, por entre as árvores e as flores, a olho-de-boneca. De forma, me ensinou a prosseguir para outros setembros, outras primaveras. E se eu me perder no meio do caminho, lembra-me que ainda posso ter a ajuda dela.

Autor: Jornalista Herison Schorr