Sumiço de explorador polonês entre SC e PR aguçou imaginação de cronistas no início do século XX

1906. As florestas intocadas entre o Litoral Norte de Santa Catarina e Sul do Paraná atraíam expedicionários de todo o mundo, para desbravá-las. Os burburinhos que sondavam pelas vielas das antigas cidades europeias era de que havia pepitas de ouro escorrendo entre as pedras onduladas do rio Cubatão e São João, em direção ao mar. Mas, acompanhados das histórias de desbravadores esfarrapados que tornavam-se pomposos aristocratas entre uma única fase da Lua, caminhavam aos mesmos passos as lendas tenebrosas de nativos indígenas “selvagens” devoradores de gente. Histórias que davam um freio nos sentimentos de ambição.

Porém, dentre os corajosos que se arriscavam, estava o jovem alfaiate polonês Mariano Karlinsky, de 24 anos, que vislumbrava uma nova vida, por meio do nobre metal, ao lado de seus compatriotas. A expedição percorria as florestas de São Francisco do Sul, onde atualmente é o município de Garuva, bordeando as margens do rio São João.

O que o aventureiro não podia imaginar era que, dias após o início da expedição, seu nome estamparia os jornais da época, não como o mais novo rico descobridor de minas de ouro em Santa Catarina, mas como outro desaparecido entre as trilhas das matas nativas, com todos os perigos que nelas se guardam. O fatídico sumiço abriu margem para as imaginações sombrias e preconceituosas dos cronistas da época, que descreviam suas hipóteses baseando-se em histórias populares de interações hostis com os nativos botocudos.

Família de botocudos. Foto: Biblioteca Nacional Digital

Gleison Vieira é doutor em História e estuda o caso do desaparecimento do polonês para seu livro: Jardim das Utopias: a saga de Derrion e dos franceses falansterianos na Colônia do Palmital (1842-1850), em Garuva (SC). Segundo o professor, que utilizou jornais da época como objetos de pesquisa, o desaparecimento de Mariano foi descrito pelos cronistas com duas hipóteses: de que ele havia sido devorado por um “bugre”, como eram chamados os nativos, pelos colonizadores, ou que ele havia sido capturado pelos botocudos para servir como escravo sexual das indígenas. 

“Há cerca de 2 anos que os sertões de sudeste do nosso Estado estão atraindo a atenção de estrangeiros, polacos recém-chegados, na maioria, os quais baseados não sabemos em que documento ou roteiro se embrenham por eles a procura de ouro! Quase todas as expedições visam as cabeceiras do rio Cubatão, (…) não obstante terem muito rebuscado o leito do rio a catadas pepitas que fizeram as grandes fortunas da Califórnia. Faz um tempo que partiu para uma excursão no Cubatão o polaco Mariano Karlinsky, de 24 anos de idade, acompanhado pelos compatriotas Gryperik e Buorepky. Achavam-se já os excursionistas pela fazenda do Sr. José Carvalho, onde existe uma fábrica de farinha de mandioca, quando Karlinsky, separando-se dos companheiros, não mais apareceu. (…) Visto não ter sido encontrado, embora para isso empenhassem os seus companheiros todos os esforços, é muito possível a hipótese de haver algum bugre atacado e devorado o infeliz excursionista”.

Nota Homem Desapparecido in Jornal A República, Curitiba, 16 de Maio de 1906.

Sobre a primeira hipótese, Gleison foi enfático: ” A antropofagia – ato de comer carne humana – era uma prática dos povos Tupis, que habitavam o litoral, mas até 1700, não se tinha mais Tupis no Brasil, pois foram todos dizimados. Os botocudos não comiam carne humana, sua alimentação era baseada na coleta de pinhão e mariscos”, afirmou. Para discutir sobre segunda hipótese, Gleison afirma que ainda não há pesquisas sobre a prática de escravidão sexual entre os povos originários do Brasil, e que essas suposições são baseadas nos conceitos errôneos que a população tinha, e tem, sobre as etnias pré-colombianas.

Edição do jornal Diário da Tarde, do Paraná. Publicado em 1906. Foto: Hemeroteca Digital Nacional

“Esse é um ótimo exemplo do preconceito, quando eu desconheço o outro e crio impressões negativas sobre aquilo que não conheço. Hoje, com toda informação que temos, ainda existe esse preconceito com os indígenas, imagina há 100 anos atrás”, lamentou.

Gleison conta que essas hipóteses são baseadas em outras histórias descritas no século XIX nos jornais da época, e que atravessaram gerações, como do caso de um argelino que desapareceu no vale do rio Cubatão, entre Garuva e Guaratuba e foi mencionado por um cronista do jornal curitibano Diário da Tarde, em 1906. A história se tornou uma verdadeira lenda entre os moradores que contavam sobre o europeu que viveu prisioneiro dos nativos da região, servindo, possivelmente, como reprodutor às indígenas. 

Dentre as possibilidades mais amenas sobre o paradeiro do infortuno polonês, está a de que ele conseguiu encontrar uma das trilhas que ruma até Curitiba, onde, possivelmente, foi acolhido pelos moradores.

Estouro do conflito, anos antes

No início do século XIX, aos pés do Monte Crista, Norte do Estado, remanescentes botocudos utilizavam o local como caminho entre a serra e o litoral. A comunidade estava em rota de colisão com o avanço dos colonizadores europeus que, em 1840, iniciaram as aberturas do que foi chamado de Linha de Defesa: uma estrada que ligaria o Litoral Norte ao Litoral Sul, com a presença de fortes de defesa, na intenção de tornar essa região mais atrativa e “segura” aos que ocupavam a região.

Gleison destaca uma frase de Antero José Ferreira, na época então Presidente da Assembléia Legislativa de Santa Catarina, que em sua “Falla” de 1841, fez uma referência a deste “perigo eminente” no extremo Norte catarinense:

“O maior inimigo, o gentil Bugre, que há perturbado em alguns lugares a tranqüilidade da Província, tem-se mostrado em differentes logares do Norte”.

O professor descreve que nos últimos meses de 1848, na vila das Três Barras – que pertencia ao município de São Francisco do Sul – “os moradores sentiram na pele a erupção da fúria acumulada dos nativos, fúria esta resultado da brutal política de colonização, política (re)promovida desde aquela carta de D. João VI”.

Em 1848, na fazenda das Três Barras, onde há trinta annos não consta da apparição alguma de Gentio e nem era de presumir apparecesse, tanto pelo grande numero de moradores, tanto pela não interrompida passagem viandantes, que transitão para a Curityba, appareceu em pleno dia um grupo d’esses selvagens, cercarão trez casas, matarão uma preta, que cahindo, abafou uma pequena cria que conduzia, feriram uma moça branca e saquearam dez casas, cuja família, que só continha mulheres, refugiou-se no matto. […] Em janeiro [1849] tornarão a apparecer na Fazenda de Luiz Nunes da Silveira no lugar Palmitar, em que accommetteram a casa de D. Joaquim de Jezus, roubaram quanta roupa estava pelos pastos e assassinaram um mulatinho de dois annos, e só fugirão, deixando um arco e umas flechas, quando apparecendo o visinho Manoel Nunes lhes fez fogo com a sua espingarda”.

A revolta botocuda, segundo o professor, se imprimia mais ao Norte, à margem esquerda do rio São João, já em solo paranaense. Quase trinta anos após o incidente, um contingente botocudo ocupou uma fazenda no sertão do que era conhecido como Taquaruvu, no lugar chamado “Pai Paulo”. Era 1875, quando 125 moradores fizeram um abaixo assinado exigindo a retirada dos botocudos pelas autoridades da Vila de Guaratuba.

Naquelas várzeas sombreadas pela imponência do Araraquara, no sítio Pai Paulo, houveram rebeliões dos nativos no início de 1875. Em carta enviada ao presidente da Província do Paraná, o chefe de polícia provincial noticiava: em telegrama enviado ao presidente da Província do Paraná, o chefe de polícia provincial noticiava:

“Informa que o subdelegado de polícia de Guaratuba (PR) comunicou-lhe, por telegrama, que os ‘bugres’ sitiaram um engenho no lugar denominado Pai-Paulo, levaram algumas ferramentas dos trabalhadores, atiraram 14 flechas, feriram pessoas e assassinaram Joaquim Jerônimo Leite. Em vista disso, algumas praças de Paranaguá (PR) foram enviadas para o local, porém, mesmo assim, os índios continuaram rondando a região, sendo então enviadas praças de Curitiba. Autor: Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque Júnior – chefe de polícia da província do Paraná. Curitiba, 01/02/1875”.

Município de Guaratuba. Região foi palco de inúmeros confrontos com os botocudos. Foto/Acervo da Secretaria de Turismo de Guaratuba

“Dois meses depois, um destacamento de praças foi enviado a Guaratuba para conversar com os indígenas, orientar ‘o subdelegado da mesma a presentear os índios com ferramentas, no intuito de amansá-los'”, explicou.
Gleison salienta que esse avanço cotra os povos originários, em Santa Catarina e no Paraná, era balizado pela ideia da auto-afirmação de “civilizado” europeu que quer “civilizar” os povos considerados inferiores.

“Essa afirmação sobre o secular ideal europeu está latente nas palavras de Adolpho Lins, na época, Presidente da Província do Paraná, que fala não somente do enfrentamento de 1875, na localidade Pai Paulo, mas mostra, de maneira explícita, a cosmovisão eurocêntrica do nativo americano (esse outro) enquanto “Ser Periférico””:

“A transformação, pois, d’estes selvagens em homens civilizados, é o problema todo de ensino humano complicado (…) É preciso pois muita paciência para conseguir algum resultado na espinhosa missão de chamar a civilização estes habitantes das selvas; foi uma idéa proveitosa a creação de aldealmentos dirigidos por catechistas dedicados, que, se não podem vencer a índole errante dos índios ainda mesmo os mansos, conseguem modificá-la grandemente, e incutir nos adolescentes e nos que nascem ali, a instrucção religiosa e os princípios da educação. Entretanto se alguns índios como os Coroados, Cayoás e Guaranys são domáveis, posto que não aceitam todos os hábitos da vida social, não repellem inteiramente o contacto com os homens civilizados, outros, como os botocudos são ferozes e indomáveis, e em suas correrias commettem as maiores atrocidades. (…) Felizmente durante o tempo de minha administração nenhuma d’estas scenas sanguinárias se deu; nas proximidades de Guaratuba e Rio Negro tem apparecido alguns d’estes selvagens, mas não têm se animado ao assalto.”

Texto: Herison Schorr. Jornalista formado pela Faculdade Bom Jesus Ielusc

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