O moradores de Garuva e Itapoá acompanham nas últimas semanas uma série de perdas irreparáveis para as famílias dos municípios. As mortes, por motivos diversos, desenvolveram nas consciências daqueles que ficaram um sentimento que, geralmente, não somos preparados para vivenciar por ser uma espécie de tabu: o luto. Para entendê-lo, o Folha Norte SC conversou com a psicóloga Eliselly Romão, que atua na rede pública de Garuva.

Eliselly inicia suas falas explicando que, antes de adentrarmos no tema luto, torna-se fundamental esclarecer o próprio conceito. Em geral, o luto é associado à morte de um ente querido, já que a perda de alguém amado constitui um rompimento definitivo que acarreta diversas reações emocionais associadas ao sofrimento humano. Porém, o processo de luto permeia várias outras situações, sendo caracterizado como um estado emocional específico, que pode ter início pela ameaça ou pelo real rompimento de um vínculo de afeto ou de uma circunstância estabelecida.
“Basicamente, o luto é o período de adaptação à nova configuração instalada após a perda de alguém ou de algo, durante o qual precisamos desenvolver estratégias de enfrentamento à dor a fim de retomarmos o equilíbrio interno. Assim sendo, o luto pode surgir devido a um falecimento, à uma separação, à uma demissão, ao diagnóstico de uma doença, à mudança de residência ou a qualquer outro evento que desestabilize a ordem estabelecida e ameace os planos futuros”, explicou e complementou: “A morte e seus desdobramentos ainda hoje são encarados como um tabu, ou seja, um tipo de assunto a ser evitado, permeado por mistérios, crenças e dúvidas, complementa a psicóloga”.
A profissional comenta que o processo de luto envolve vários sentimentos que ocorrem concomitantemente, de modo pouco organizado, muitas vezes ambivalentes. Segundo ela, cognitivamente, é comum que as pessoas enlutadas se sintam confusas, querendo encontrar explicações para o evento a fim de tentarem atenuar o caos em que se sentem imersas. “A pessoa enlutada tende a vivenciar uma série de alterações em seu cotidiano e, muitas vezes, prejuízos emocionais, cognitivos, físicos e sociais.

Foto: Herison Schorr
Apesar de características comuns, a maneira como cada um enfrentará o luto é extremamente individual, variando de acordo com o repertório pessoal, o histórico, o momento de vida e as condições em que a perda se deu. Desse modo, as pessoas expressarão sua dor de formas diferentes e é preciso acolher e respeitar a construção e o tempo de cada um para lidar com o luto. Em geral, quando a morte do ente querido ocorre de maneira trágica e inesperada, o impacto é ainda mais intenso e desorganizador”, enfatizou.
Os estágios do luto
Em 1969, em seu livro “Sobre a morte e o morrer”, a psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross apresentou sua teoria acerca dos estágios comumente vivenciados pelas pessoas enlutadas, sendo eles:
Negação: nesse estágio, é comum que a pessoa recorra à negação e ao isolamento como um mecanismo de defesa temporário para aliviar o impacto da notícia; uma recusa a confrontar-se com a situação.
Raiva: momento de externalização da revolta provocada pela perda, podendo levar à agressividade. A procura por culpados e questionamentos acerca dos motivos do evento são comuns.
Barganha: tentativa de negociação para reaver aquilo que foi perdido, seja por meio de promessas ou acordos com figuras que poderiam ter poder para intervir nos acontecimentos (Deus, entidades superiores, profissionais de saúde, etc.).
Depressão: momento de maior manifestação do sentimento de tristeza, intensificação da saudade, desinteresse por certos aspectos da vida e maior isolamento. Vale ressaltar que o termo aqui utilizado não corresponde ao transtorno mental depressivo, mas sim a um conjunto de manifestações que se assemelham a alguns dos sintomas comuns aos quadros depressivos. Contudo, nesse caso, restringem-se ao processo do luto e são considerados com uma reação natural para a elaboração da perda.
Aceitação: estágio de maior serenidade, quando as pessoas conseguem expressar de modo mais claro seus sentimentos, pensamentos e necessidades, alcançando um maior nível de equilíbrio e organização.
Cabe ressaltar que tais estágios não representam uma ordem estática, de modo que as características de cada um deles se alternam ao longo do tempo, perpassando umas às outras em um movimento não uniforme.
“Faço as coisas e fico pensando ainda em contar para ele”
A fotógrafa Cristiana Nunes da Silva, de 29 anos, moradora de Garuva, ainda sente a recém perda do marido, o professor Nereu Lopes Pereira 65, que morreu no dia 9 desse mês após não resistir às sequelas de um AVC.
De acordo com Cristiana, seu luto, atualmente, permeia o estágio da negação, estimulado pelo sentimento de que ‘a ficha ainda não caiu’. Ela descreve sensação de viver um pesadelo, da dificuldade em acordar e deparar com a certeza de que ele não está ao seu lado, além do difícil momento em que Cristiana volta do trabalho e não o encontra em casa. “Faço as coisas e fico pensando ainda em contar para ele”, complementou.

A viúva acredita que o sentimento de luto surge ao decorrer do tempo, pois, segundo ela, na hora da morte e os trâmites que se sucedem ocupam espaço nos pensamentos, evitando a possibilidade de pensar na perda que ocorreu.
Cristiana observa que já sentiu o luto em momentos de sua vida, com a morte de seus avós; porém, a dor da perda do seu marido tornou-se mais latente. “Quando o vô faleceu foi mais fácil de dar continuidade a vida; já com Nereu todo dia é uma batalha a ser vencida. Estou forte, sim. Mas todo dia a saudade aumenta”, disse.
Outro sentimento que surgiu no processo de seu luto foi a raiva. Cristiana sugere que ela apareceu quando passou a pensar nas vezes que o marido não se preocupava com a própria saúde, “por ele não querer fazer as consultas de rotina”, acrescentou.
Para a viúva, o sentimento de perda é muito complicado, tirando-lhe o chão, algumas vezes, e fazendo a consciência não funcionar como deveria, transformando os dias cinzas e as noites longas com a saudade que se intensifica. “Mas, ao mesmo tempo, o coração fica tranquilo. Penso que ele está ao lado do nosso Criador, onde não há dor nenhuma”, acredita.
Entendendo o luto
Na atualidade, o Modelo do Processo Dual do Luto, elaborado por Margaret Stroebe e Henk Schut em 1999, tem sido considerado como o mais adequado para compreender esse tema tão complexo. Conforme os autores, o luto não deve ser considerado como uma série de etapas que levariam à uma resolução da questão, mas sim como um percurso de adaptação e oscilação. Este modelo propõe que o enfrentamento adaptativo é composto ora por confrontação e ora por evitação da perda, levando gradativamente à restauração.
A psicóloga acrescenta que os autores identificaram dois fatores que interagem entre si durante o processo de luto, sendo um deles voltado para a perda (lembranças/saudade/negação/dúvidas/ introspecção) e outro para a restauração (reorganização/nova identidade/retorno à rotina/novos interesses/ajustamento/ busca de sentido e significado). Assim sendo, o processo de luto é dinâmico e flexível. A partir do modelo dual do luto, oscilar entre ser emocionalmente confrontado pela perda e evitar entrar em contato com essa questão promove restauração, permitindo a elaboração e a possibilidade de a pessoa se implicar em outras áreas de sua vida, mesmo ainda em contato com a dor. Há assim, certa regulação emocional.
Os sintomas do luto
James William Worden, especialista em luto, em seu livro “Aconselhamento do luto e terapia do luto”, lista categorias de sintomas considerados naturais no processo de luto, dividindo-as em:
Sentimentos: tristeza, raiva, culpa, medo, ansiedade, solidão, fadiga, desamparo, choque, anseio, emancipação, alívio e estarrecimento;
Sensações físicas: vazio no estômago, aperto no peito, nó na garganta, hipersensibilidade ao barulho, sensação de despersonalização, falta de ar, respiração curta, fraqueza muscular, falta de energia, boca seca;
Cognições: descrença, confusão, preocupação, dificuldade para concentrar-se, sensação de presença, ilusões e alucinações relacionadas à perda;
Comportamentos: alterações do sono, sonhos frequentes, alterações do apetite, suspiros, isolamento, hiperatividade, evitação de lembranças, procura pela pessoa, choro.
Cada um desses itens representa reações naturais do luto e não há nada de patológico em nenhum deles. No entanto, Eliselly ressalta que, caso as emoções que persistem por tempo muito prolongado e com alta intensidade, podem predizer reação de luto complicado.
“Em geral, não há um tempo definido para que o luto seja elaborado, mas utiliza-se como parâmetro o período de doze meses. Contudo, há casos em que a pessoa permanece voltada para a perda e tem significativas dificuldades de se ajustar à nova realidade, com prejuízos importantes em sua rotina e saúde mental”, alertou.
Esse diagnóstico é chamado de luto complicado, que pode ser manifestado por: foco extremo na perda, desejo intenso e incessante de encontrar a pessoa que faleceu, negação e evitação persistente da dor, estado de humor alterado, diminuição do autocuidado, sentimento de que a vida não tem propósito, dificuldade para realizar atividades do cotidiano e afastamento de outros relacionamentos. A importância de se identificar um processo de luto complicado está em proporcionar a intervenção terapêutica mais adequada. Atenta-se ao fato de que toda avaliação deve considerar o contexto cultural no qual a pessoa está inserida, pois cada cultura tem ritos próprios que precisam ser respeitados e compreendidos, frisou Eliselly.
A psicóloga identifica que os fatores de risco ou de proteção para o desenvolvimento do luto complicado são: causa da morte, circunstâncias da perda, local da morte, envolvimento nos eventos relacionados, idade, gênero, grau de proximidade, estilo de apego, fundamentos culturais e religiosos, modo de enfrentamento, temperamento, experiências prévias com perda e morte, rede de apoio, funcionamento familiar, questões não resolvidas entre os envolvidos e perdas secundárias (como financeiras, por exemplo). Existem situações específicas que podem agravar ainda mais o processo de luto, tais como as mortes trágicas, inesperadas, infantis e múltiplas. “Nesses casos, o estabelecimento de uma boa rede de apoio é indispensável a fim de fornecer continência emocional aos enlutados”, sugeriu.
Conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais 5ª edição, a depressão pode coexistir com o luto, se caracterizando por humor deprimido de modo generalizado e persistente. Para o diagnóstico do quadro depressivo, vários critérios precisam ser considerados além do humor, tais como: motivação, interesse, prazer, sono, alimentação, energia, comportamento motor, capacidade cognitiva, autoestima e ideação suicida,listou a profissional. Também, segundo Eliselly, é necessário avaliar frequência, duração e intensidade dos sintomas, bem como o prejuízo e o sofrimento associado. Considerando a similaridade dos sintomas depressivos e das características do luto, o conteúdo do pensamento pode ser um bom indicativo para diferenciar a condição de luto e o transtorno depressivo. Enquanto no primeiro os pensamentos estão voltados, majoritariamente, às lembranças e preocupações relacionadas à perda, na depressão são comuns ideias ruminativas de autocrítica e pessimismo.
“Diante do sofrimento emocional, os enlutados podem recorrer ao acompanhamento psicológico para obtenção de acolhimento, apoio e manejo do luto. O papel do psicólogo é ajudar o enlutado a lidar com a perda de forma saudável, a fim de restabelecer o equilíbrio. Para tanto, é necessário reconhecer a realidade da morte, compartilhar e contextualizar a experiência da perda, atribuir sentido ao momento vivido, reorganizar os aspectos da vida e investir em novos projetos e relacionamentos”, aconselhou.
Orientações para quem convive com enlutados
Para reforçar a rede de apoio em torno da pessoa enlutada, Eliselly listou um manual que pode ajudar durante o processo; veja:
É necessário, em primeiro lugar, que você deixe-a expressar sua dor, permitindo que ela demonstre a saudade; não a impeça de chorar e não lhe exija superação imediata; seja paciente com as diferentes e inesperadas reações do luto; esteja por perto e coloque-se à disposição para ajudar naquilo que for preciso; nesse momento, tarefas simples do cotidiano podem parecer difíceis de serem realizadas sem auxílio; evite tomar decisões pela pessoa enlutada, pergunte à ela sobre suas preferências e estimule que defina seus próprios planos; nunca diga “foi melhor assim”, pois nem sempre será para a pessoa que ficou; não finja que nada aconteceu; deixe-a expressar-se, seja por meio de sua espiritualidade e de suas crenças, mesmo que você não partilhe delas.
A perda de um filho: transformando a dor em amor
A francisquense Sônia Maria Costa Rocha, de 62 anos, vivenciou, segundo ela, a dor que nenhuma mãe deveria sentir: a morte de um filho. Soninha, como é carinhosamente conhecida pela comunidade onde vive, conta que há 31 anos atrás, em uma tarde, seu filho caçula de 5 anos brincava no quintal quando chegou até a mãe pedindo bolachas. Prontamente, para satisfazer os desejos do menino, Sônia foi até a venda e comprou um pacote do seu doce preferido, mas, ao chegar em casa, observou que algo estava acontecendo. “Ele estava dentro de casa e a minha filha gritando pra mim: ‘Mãe, o Nadinho não fica em pé'”, lembra. Ao se aproximar do filho pequeno, notou que a criança ardia em febre, de uma forma repentina.

Imediatamente, Sônia levou a criança ao médico, onde foi diagnosticado com ‘dor de garganta’, receitando-o medicações para a inflamação. Ao voltar para casa, a mãe passou a noite medicando e observando o estado de saúde do filho, que piorou na madrugada. Desesperada, Sônia, com a ajuda do filho de 13 anos, levou o caçula de bicicleta ao pronto socorro. “Chegando lá, só deu tempo deles abrirem a portinha; ele entrou, entrei com ele nos braços, aos berros, chorando, e ele faleceu”, lamentou a perda do filho por meningite não diagnosticada.
Sônia conta que devido a morte abrupta do filho mergulhou em uma depressão profunda, onde desenvolveu um sentimento de culpa por, segundo ela, não conseguir salvar a vida do menino.
“A perda de um filho é a maior dor que existe na vida de uma mãe. Tu perder um filho é a mesma coisa que perder um pedaço do teu coração, um pedaço da tua alma junto”, revelou.
Ainda sofrendo com a recém perda do filho, Sônia lembra da visita de amigas evangélicas que a recomendaram transformar a dor em amor ao próximo, ingressando em campanhas de ajuda para crianças e mães carentes. Seu primeiro gesto foi organizar uma festinha de Natal aos pequenos de seu bairro. “Hoje em dia eu faço uma festa de Natal com oitocentas e poucas crianças”, contou orgulhosa.
A saudade virou ONG: SOS Vida Sem Fome, ministrada por ela e que atende milhares de pessoas carentes em São Francisco do Sul. No ano passado, com as enchentes que assolaram o município, Sônia e sua equipe arrecadaram cerca de duas toneladas de alimentos, que foram distribuídos para a comunidade. Mensalmente, com a pandemia da Covid-19, sua ONG distribui cestas básicas, além de montar a mesa solidária com roupas e sapatos para doação.
“Eu fiz da dor do luto uma dor de esperança, uma dor de ajudar as outras famílias, de ajudar as outras mães que, às vezes, não tem um pão para dar de comer a um filho”, ressaltou.
Atualmente, Sônia afirma que ainda há saudade, mas seu coração está sereno em relação à perda do filho, acreditando que, o pouco que ele viveu, foi muito amado.
“Tu perde qualquer familiar, tu não sente tanto como perder um filho. É uma dor para o resto da vida, é uma dor tão grande que só quem perde é quem sabe”, diz.
Grata pelas orientações que recebeu no passado, hoje Sônia aconselha as pessoas que estão de luto a transformar a dor em solidariedade, ressaltando o momento difícil que estamos vivendo, com a pobreza latente e a falta de amor.
Um olhar racional sobre o luto
A psicóloga acredita que para que possamos superar o tabu que envolve o tema da morte, é fundamental que passemos a falar mais a respeito dela, já que se trata de um evento inevitável na vida humana. “Muitas famílias sofrem caladas suas perdas, deixando de expressar sua dor uns aos outros, se privando do alívio que o compartilhamento poderia gerar, intensificando a solidão e o afastamento pelo receio de citar o assunto”, ressalta. Para ela, o fato é que não há imunidade à dor da perda, apesar das peculiaridades pessoais. Assim, para que possamos compreender como o outro lida com o luto é imperioso trazer o tema à tona a fim de atravessarmos o sofrimento unidos.
Nesse sentido, também é importante conversarmos com as crianças sobre esses eventos, não ocultando-lhes o conhecimento acerca do ciclo vital. Naturalmente, a linguagem precisa ser adequada ao nível de compreensão infantil, mas é fundamental evitarmos a instalação de crenças falhas que não condizem com a realidade e tendem a intensificar a incompreensão ao longo do tempo. Para tanto, a profissional lista livros e filmes úteis que podem ajudar nessa tarefa:
Livros
“O que acontece quando alguém morre?” – Michaelene Mundy; “”Vovô não “vai voltar?”” – Carmem Beatriz Neufeld e Aline Henrique Reis; “O livro do adeus”’ – Todd Parr; “E agora?” – Karen Scavacini.
Filmes
Beleza oculta; Intocáveis; Para sempre Alice; P.S. eu te amo; Reine sobre mim; Up – altas aventuras; Viva – a vida é uma festa.
A psicóloga também recomenda serviços úteis de entidades que auxiliam no processo do luto; são esses:
Abrigo humano: Acolhimento online para pacientes pós Covid e para pessoas em luto por Covid. Instagram: @abrigohumano
Centro de Valorização da Vida: oferece suporte emocional de modo voluntário e sigiloso. Site: www.cvv.org.br. Telefone: 188.
Proalu: programa de acolhimento ao luto do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP por meio de plataforma online. E-mail: acolheluto@proalu.com.br
Siga o Folha Norte SC no Facebook e receba mais notícias de Garuva e região!
Texto: Herison Schorr
Jornalista formado pela Faculdade Bom Jesus Ielusc